Mal Viver e Viver Mal. Notas de Um espectador.

Mal Viver e Viver Mal. Notas de Um espectador.

Vimos ontem (29-4-2023), no Indie Lisboa 2023, uma antestreia do conjunto de dois filmes de João Canijo, «Mal Viver» e «Viver Mal» – premiados com o Urso de Prata do Festival de Berlim de 2023 -, a convite dos amig@s da Midas Filmes (produtores dos filmes).

Do meu ponto de vista, temos aqui um João Canijo em registo mais intimista, menos centrado nos dramas sociais dos deserdados da vida em sociedade (tipo «Noite Escura» ou «Ganhar a Vida») e mais focado nos dramas psicológicos dos deserdados da mesma vida, atingidos pela incomunicabilidade entre os seres humanos e pela depressão.

O foco na depressão e na incomunicabilidade entre os seres humanos está mais presente no primeiro filme, «Mal Viver», o qual dura certa de duas horas, e acaba na morte da protagonista (que, como afirma a sua filha numa passagem anterior, terá querido «resolver todos os problemas da vida de uma única vez»). Neste filme, avulta a extraordinária prestação de Anabela Moreira, no papel de mãe deprimida, algo obsessiva-compulsiva, para sobreviver… e acusada pela sua mãe, Rita Blanco, de estar «vazia por dentro». Além de excelente prestação das duas atrizes referidas, refira-se que ainda a ótima prestação de Madalena Almeida e Cleia Almeida nos papéis de filha e tia, respetivamente.

Anote-se também o excelente trabalho de realização, bem como os magníficos cenários (tudo se passa num belíssimo hotel dos anos 1970 na zona Ofir, concelho de Esposende, no norte de Portugal) e o extraordinário trabalho em sede de fotografia. Quanto a este último aspeto, gostaria de realçar dois elementos que me interpelaram nos cenários e na fotografia. Primeiro, alguns planos, nomeadamente, quando se filma a piscina do hotel iluminada com luz elétrica, já ao anoitecer (no céu em fundo), fizeram-me lembrar um célebre quadro do René Magritte, que também aposta no contraste de luzes, do dia e da eletricidade…. E, de certa maneira, no «Trompe d’oeil»… Ver o quadro aqui. Segundo, muitas vezes, no filme, os personagens e as cenas são vistas e revistas através de vidros, de espelhos, de reflexos, de imagens algo distorcidas, repetidas, reproduzidas… quiçá numa alusão simbólica às múltiplas interpretações do real e à improbabilidade da comunicação….

O primeiro filme, «Mal Viver», é centrado numa família, toda glosada no feminino (o único homem, o pai da filha da protagonista, e marido ou ex-marido desta última, tinha acabado de morrer… e, portanto, prima pela ausência… embora esteja amiúde presente nas falas das mulheres…), nos seus dramas psicológicos e na sua estrutural incomunicabilidade, a qual gere o hotel (propriedade da avó, representada por Rita Blanco), em decadência.

O segundo filme, «Viver Mal», é centrado (em três «episódios» autónomos cujo título é, segundo a folha de sala no site da Midas Filmes, inspirado em peças do dramaturgo August Strindberg, «Brincar com o Fogo», «O Pelicano» e «Amor de Mãe»; o conteúdo é livremente inspirado em tais peças) na vida de três conjuntos de hóspedes, que no primeiro filme apareciam quase como meros figurantes, meras sombras ou reflexos, os quais no segundo filme assumem os papéis centrais, passando as mulheres da família que gere o hotel ao papel de meros figurantes, meras sombras ou reflexos. Primeiro, um jovem casal, composto por uma influencer do instagram e um fotografo, Nuno Lopes, em que aquela parece que procura desesperadamente o amor deste, tal como aliás de outros admiradores no instagram … o fotografo parece simultaneamente perturbado de ciúmes e, talvez por isso mesmo, apostado em mostrar o seu desprendimento face à influencer.

Segundo, um casal acompanhado da mãe (Leonor Silveira) da jovem que só pensa em catrapiscar o putativo genro o qual, por sua vez, parece incapaz de prover o seu sustento, tal como aliás a sogra, aparentando a filha ser a «bread winner» da família.

Terceiro, uma mãe (Beatriz Batarda), que viaja com a filha (putativa atriz, em formação) e a namorada desta última. Num estranho «amor de mãe», esta última parece apostada em obstaculizar a relação das duas jovens… numa relação simultaneamente obsessiva e patológica. A filha, por sua vez, parece falha de autonomia e capacidade de decisão própria…

Apesar de «Viver Mal» ser bastante menos depressivo do que «Mal Viver», sendo amiúde hilariante, parecem-me estar sempre presentes os jogos de luzes e de sombras nas relações entre as pessoas, a mesma improbabilidade da comunicação, e de novo as relações algo disfuncionais entre as personagens. Mais uma vez, temos um elenco (totalmente diferente, porém, face a «Mal Viver») de  luxo entre os protagonistas, com ótimas prestações seja dos atores e atrizes consagrados, seja das mais juniores atrizes.

Aviso à navegação: trata-se de dois filmes longos (cerca de 2h cada um), embora se vejam muito bem (sobretudo para quem, como eu, gosta de cinema intimista e para ver em registo contemplativo…), mas que devem ser vistos consecutivamente…. por isso, preparem-se para uma sessão de cinema tipo ir à Ópera ver uma peça do Wagner… Por exemplo: primeiro, deve ver-se o «Mal Viver», depois janta-se… e a seguir vê-se o «Viver Mal», depois de jantar…. Ontem, os amigos da Midas Filmes e do Indie Lisboa (com sala grande do São Jorge completamente cheia e sem ninguém arredar pé, até ao fim!…) providenciaram um «lanchinho» consubstanciado numa taça de bom vinho, oferecida num intervalo de cerca de 15 minutos… Ide, ide: rigorosamente a não perder!

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André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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