31 Out Umas presidenciais afinal competitivas
- Introdução
Até ao aparecimento da candidatura de Ana Gomes (AG), e dada a enorme popularidade do presidente incumbente, as eleições presidenciais de 2021 corriam o risco de ser uma espécie de «passeio na avenida» para Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), como foram as de 1991 para Mário Soares (MS), que foi reeleito com cerca de 70% dos votos, muito por causa da desistência do PSD em apresentar candidato próprio e por dar apoio difuso a MS. Todavia, as presidenciais de 1991 foram também as menos participadas de sempre até então, com cerca de 48% de abstencionistas; as presidenciais imediatamente anteriores, de 1986, tinham sido muito competitivas e as mais participadas de sempre (22% de abstenção na segunda volta).
Nas presidenciais de 1991, a falta de comparência do PSD deixou MS a falar só com dois campos, um mais à esquerda (Carlos Carvalhas, pelo PCP), outro mais à direita (Basílio Horta, pelo CDS). Apesar da enorme votação percentual em MS, também devida à sua elevada popularidade, a eleição redundou em baixa competitividade e, consequentemente, em elevadíssima abstenção. Agora, a ter-se verificado uma falta de comparência do campo socialista e/ou a um apoio mais ou menos explicito da elite dirigente do PS a MRS, corríamos idêntico risco não só de ter, de novo, uma gigantesca abstenção, como um desmedido palco para um candidato oriundo de um partido (Chega) que faz uma oposição desleal, eivada de posições altamente contraditórias e ofensivas da Constituição (CRP) e dos Direitos Humanos DH). Portanto, a existência de candidatos presidenciais dos vários campos significa que haverá mesmo eleições presidenciais em janeiro 2021. Isso é bom para a democracia e para a participação política. Por tudo isso, o objetivo deste artigo é apenas dar uma breve visão de relance das posições e dos legados (registos históricos) dos vários candidatos em presença.
- O Presidente incumbente: MRS
O atual PR tem tido um papel muito significativo e marcante no exercício das suas funções, pela positiva, claro. Seja pelo contraste face à crispação e impopularidade com que terminou o segundo mandato Cavaco Silva (CS), seja pela sua proximidade com a cidadania, seja pela grande atenção dada às questões da cultura e do livro, seja pela autonomia que tem demonstrado quer face ao seu partido (PSD), quer face ao PS. Entre várias outras coisas relevantes do exercício das suas funções, destaca-se a normalização institucional do acesso da esquerda radical (BE, PCP e PEV) à esfera governativa, seja logo na sua campanha para as presidenciais de 2016, seja durante todo o exercício 2016-2021. Primeiro, sem deixarem de marcar as diferenças político-ideológicas face a ele, tal registo explica as apreciações positivas dos seus opositores à esquerda. Rui Tavares (apoiante de AG, tal como o LIVRE) disse que MRS «representa o que de melhor o seu campo político tem para oferecer ao país» e com um «mandato presidencial inegavelmente construtivo, e globalmente positivo» (Público, 11-9-2020). AG disse fazer «um balanço positivo do mandato do Presidente MRS» (Público, idem). Marisa Matias (MM) disse também «Teremos visões diferentes. Quero deixar bem claro que o mandato de MRS foi incomparável. Houve vários momentos em que nos encontrámos (…). Não esqueço também o seu papel no cumprimento da vontade democrática do povo português a seguir às eleições, quando uma crise política se arrastou. (Público, 10-9-2020)». No lançamento da sua candidatura, João Ferreira (JF) fez apenas «críticas diplomáticas ao atual inquilino do Palácio de Belém (Público, 18-9-2020)». É obra para um PR vindo do centro-direita.
- Os candidatos das esquerdas: a oposição construtiva a MRS
Há quem argumente que as esquerdas (PS, BE, PCP e PEV) deveriam ter-se concertado para ter um candidato único. Mas nem tal se vislumbra realista, dado o fim da «Geringonça» em 2019, até de uma «Geringonça» só com BE (como este pretendeu) e o PS (e este primeiro disse que sim, mas depois perante a proposta do BE de voltar às leis do trabalho pré-Troika – como o PS defendia nalguns dossiês como as indeminizações por despedimento durante a intervenção externa: ver Expresso, online, 12-12-2012 – nunca fez nenhuma contraproposta e abandonou as negociações), nem tal é congruente com a lógica das eleições presidenciais, com um sistema maioritário a duas voltas. Num tal sistema, na primeira volta «vota-se com o coração» (ou seja, no candidato mais próximo das nossas opções ideológicas), e por isso vão todos a jogo até como forma de estimular a participação, e na segunda «vota-se com a cabeça» (ou seja, no candidato do campo mais próximo de nós e com mais hipóteses de ganhar). Ou então «vota-se com os pés» (ou seja, em protesto).
AG representa o campo socialista, mas tem capacidade de penetrar muito além disso, mesmo no centro-direita. Com um registo notável de coragem, frontalidade e trabalho árduo, fosse como embaixadora durante o processo da independência de Timor Leste da indonésia, fosse no Parlamento Europeu (PE) e em Portugal (contra a corrupção, contra os off-shores, contra os desmandos na banca, etc.), a candidata demarca-se de MRS declarando a sua independência face aos interesses instalados, na luta contra a corrupção, e a lidar com os vários partidos. Já disse que MRS devia ter exigido um acordo escrito para suporte do governo no parlamento, em 2019, posição com que comungo inteiramente (CS foi um artífice da estabilidade da «Geringonça», 2015-2019 ao exigir um tal acordo), só é pena não o ter dito (audivelmente pelo menos) logo em 2019 (eu não me recordo de a ouvir dizer isso). A posição do candidato da oposição desleal pode dar uma ajuda a AG, incentivando o voto dos democratas nela: disse que se demitiria se ficar atrás dela…. Mas muito vai depender também da posição da direção socialista, e, dadas as divisões internas, parece-me muito positiva a proposta de Daniel Adrião de decidir isso em primárias (Público, 29-9-2020).
Também com um registo notável no PE, e com um resultado altamente honroso nas presidenciais de 2016 (10%), MM tem condições de repetir a façanha: também na altura concorria contra MRS, e a maioria dos socialistas (e sobretudo a sua direção), apesar de darem liberdade de voto aos militantes (por causa da candidatura de Maria de Belém Roseira, do PS), apoiaram implícita e difusamente Sampaio da Nóvoa; e MM penetra bem fora campo bloquista. Já fez notar onde se demarca de MRS: nos temas do liberalismo cultural e social (aborto, eutanásia, casamento gay, etc.); numa atitude mais crítica face à Europa; na defesa mais acérrima do papel do Estado na Saúde (onde MRS defendeu, nomeadamente as parcerias público-privadas e um papel mais relevante do sector privado) ou na Educação (onde MRS defendeu sempre muito também as escolas privadas, do secundário ao superior); nas questões da banca e dos off-shores.
JF, pelo PCP, é o candidato com menos potencial. Embora seja um jovem muito bem preparado, inteligente e com forte capacidade de comunicação, parece ser o único candidato de relevo de que o PCP dispõe para eleições importantes: tem sido candidato e eleito eurodeputado, com boa performance, é vereador em Lisboa (onde recusou fazer maioria com o PS e o BE), e agora é o candidato presidencial. Parece um partido incapaz de inovar e com falta de quadros… além disso, JF parte com o estigma de Edgar Silva, candidato do PCP em 2016, que ficou abaixo dos 4%… quanto aos temas em que se demarca de MRS, é muito parecido com as duas candidaturas anteriores, quiçá mais pró intervenção do Estado e também bastante mais eurocético. Não será nada fácil o seu trabalho.
- O candidato da oposição desleal
O candidato da oposição desleal, André Ventura (AV), vem para apelar ao «voto com os pés» e não olha a meios (mesmo desonestos e desrespeitosos das instituições democráticas e dos direitos fundamentais) para atingir os fins, daí a classificação «desleal»: já veio classificar AG como a candidata da Casa Pia, por ter Paulo Pedroso como diretor de campanha (na altura erradamente implicado no caso de pedofilia da Casa Pia, mas que foi claramente ilibado, considerado pela justiça injustamente acusado, e o estado português foi obrigado a pagar-lhe uma indeminização por isso); AV não hesita no uso de golpes baixos e desconsideração da justiça do Estado democrático português. Além disso, vem de um partido que faz propostas que ferem a CRP e os DH: castração de pedófilos; ablação dos ovários das mulheres que abortam no SNS; etc. E o seu registo e do seu partido caracterizam-se por não ser confiável: diz que quer captar as classes baixas dos subúrbios, mas propõe a privatização do estado em todas as funções exceto as de soberania e uma fiscalidade que favorece os ricos (flat tax / imposto único de IRS, sem progressividade, ou quase); defende a exclusividade dos deputados mas é consultor fiscal e comentador desportivo (ou era, até ser dispensado); etc. Não se espera dali nada de positivo.
- Sumário
Em suma, teremos mesmo eleições presidenciais em janeiro de 2021, competitivas e, por isso, em princípio com melhor taxa de participação, e em que a competição entre as esquerdas e as direitas será feita com elevação, mas marcando as diferenças políticas, exceto da parte do candidato da oposição desleal (de onde não se espera nada de bom).
PS:
1)
declaração de interesses: apesar de não ser do BE, apoio Marisa Matias nesta eleição.
2)
Artigo originalmente publicado no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas», quinzena 7 a 20 de Outubro de 2020.
3)
Artigo publicado antes do anúncio da (muito errada, do meu ponto de vista, escreverei sobre isso mais tarde…) decisão do BE de votar contra o orçamento de estado de 2021 na votação global inicial, ficando isolado à esquerda, e votando ao lado da direita. Tal decisão errada, do meu ponto de vista, poderá, se não for revertida na especialidade e na votação final global, penalizar fortemente o partido (BE) e ter efeitos colaterais negativos na candidatura de Marisa Matias…. é, como digo, a minha humilde opinião e irei escrever sobre isso mais tarde….
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