23 Ago Uma arma contra os partidos anti-sistema, mas até quando? E para quê?
O sistema eleitoral para as legislativas francesas, maioritário a duas voltas, foi descrito na literatura especializada como uma arma contra os partidos anti-sistema (ver Fisichella, D. «The double-ballot system as a weapon against anti-system parties», in Lijphart, Arend, e Grofman, Bernard (orgs.), Choosing an Electoral System: Issues and Alternatives, Nova Iorque, Praeger, 1984, pp. 181-190). De facto, os resultados de 2024, sobretudo as mudanças verificadas da primeira (30 de junho) para a segunda volta (7 de julho), evidenciam a mecânica e a dinâmica de um tal sistema, seja em termos de comportamentos dos representantes, seja em termos dos comportamentos dos eleitores. Aqui, procuraremos, em primeiro lugar, explicar a lógica do regime eleitoral e o modo como tal sistema se traduziu nas legislativas de 2024. Todavia, os comportamentos das elites e das massas parecem ter funcionado melhor do ponto de vista eleitoral do que da perspetiva da formação do governo. O eventual insucesso das démarches nesta segunda frente, nomeadamente se não tivermos um governo da NFP (Nova Frente Popular), que ganhou as eleições com uma maioria relativa de lugares no parlamento (182 em 577), será trágico para a frente republicana (a NFP e o Ensemble / Renaissance, o partido de centro direita associado ao Presidente Macron) que barrou o caminho ao RN (a ultra direita do Rassemblement National, antes Front National). É o segundo ponto a abordar. Finalmente, abordaremos a questão do fim do «cordão sanitário», à direita, e da necessidade de uma mudança radical de políticas, sob pena da ascensão da ultradireita ao governo (e à presidência) de França se tornar uma realidade já em próximas eleições.
Comecemos pela apresentação do sistema eleitoral. Os 577 parlamentares são escolhidos em outros tantos círculos uninominais, em duas voltas, sendo as regras aplicadas círculo a círculo. Na primeira volta, para vencer, um candidato precisa de garantir a maioria absoluta dos votos expressos, bem como um número de votos iguais a pelo menos 25% dos eleitores. Caso nenhum candidato cumpra esses requisitos, realizar-se-á uma segunda volta, algo que ocorre na maioria dos distritos eleitorais. Para a passagem ao segundo turno, cada candidato da primeira volta terá de ter tido o apoio de pelo menos 12,5% dos eleitores, mas se apenas 1 candidato atender a esse padrão, os dois candidatos com o maior número de votos no primeiro turno podem continuar no segundo turno. Na segunda volta, o candidato vencedor será considerado eleito se obtiver pelo menos maioria relativa. Estamos, pois, perante um sistema de maioria absoluta (1º turno) / relativa (2º turno), desenhado para aumentar o apoio eleitoral do vencedor (em cada círculo) face aos regimes de maioria relativa (à inglesa), mas que é também um poderoso sistema de incentivos a alianças políticas. Ora a capacidade de estabelecer alianças determina grande parte do sucesso dos candidatos, que foi o que se passou à esquerda (NFP) e ao centro-direita (ER) em 2024; pelo contrário, a incapacidade de encetar alianças políticas pode ditar o insucesso de muitos candidatos, sobretudo de todos aqueles que não tiverem maioria absoluta na primeira volta (amiúde, uma parte esmagadora do conjunto de candidatos), que foi o que se passou com a ultradireita (RN), em 2024. Para «barrarem» o caminho à ultradireita, os terceiros candidatos em cada círculo (da NFP ou do E/R) desistiram a favor dos segundos ou primeiros (da NFP ou do E/R, conforme os casos) e, por causa disso, o número massivo de desistências (213) beneficiou sobretudo as esquerdas (NFP), o centro-direita (E/R), e muito menos o RN (ainda assim, houve 91 competições triangulares e 2 quadrangulares no segundo turno). O RN pode apenas beneficiar da aliança de parte dos ex-gaulistas (Les Republicans, LR), a direita tradicional: a fação dos LR, liderada por Éric Ciotti, que quebrou o «cordão sanitário». É isso que explica que as sondagens (e as distribuições de votos) tenham dado uma vitória ao RN, seguido da NFP e do E/R, mas as distribuições de assentos parlamentares tenham levado aos seguintes resultados: NFP, 188 deputados (mais 57 do que em 2022); E/R, 161 (menos 76); RN e aliados do LR/Ciotti, 142 (mais 53); LR (Les Republicans) em modo cordão sanitário, 48 (menos 13); Outros (de esquerda e direita), 38 (menos 21). Portanto, a arma contra a ultradireita anti-sistema funcionou, apesar dos cerca de 37% dos votos deste campo na segunda volta.
A capacidade estratégica das elites políticas nestas eleições, sobretudo das forças alinhadas à esquerda, começou muito antes das eleições. As eleições antecipadas de 30 de junho – 7 de julho foram marcadas pelo Presidente da República, Emmanuel Macron, de forma inesperada. Perante a vitória do RN com maioria relativa nas europeias de 9 de junho de 2024, e sondagens nacionais com projeções no mesmo sentido, as esquerdas uniram-se em tempo recorde e formaram uma Nova Frente Popular, NFP, um nome evocativo dos tempos da FP para barrar o fascismo no período entre guerras (1936), que viria a ganhar as eleições. Note-se que a NFP é bastante heterogénea porque agrupou o LFI, La France Insubmisse (75 lugares), o PSF (65), os verdes (EELV: Europe Ecologie Les Verts), com 33, e o PCF (9); a estes devem ainda juntar-se outros 11 (diversos de esquerda e dissidentes LFI). Apesar da heterogeneidade, a resposta da frente eleitoral foi muito célere e coesa. O mesmo não se pode dizer da capacidade de propor um nome para liderar o governo: ao dia de hoje, 17 de julho, não só ainda não conseguiram um nome consensual como têm discutido nomes na praça pública. A incapacidade de se entenderem pode ser fatal, mas a verdade é que o prazo ainda não expirou, apesar dos infelizes sinais dados até agora… No centro-direita, ou seja, no campo presidencial (E/R), que governou até agora com maioria relativa, 2022-2024, pede-se agora «uma maioria plural» (para superar eventuais moções de censura) e tenta-se reconstituir o centro, apesar da sua estrondosa derrota: o E/R queria dividir a NFP, fazendo uma aliança só com o PSF, o EELV e o PCF, deixando de fora a LFI: «mudar muita coisa para que tudo fique na mesma». Obviamente, na hora em que alguém da NFP aceite tal proposta será a morte imediata da aliança, será suicidário… As esquerdas tentam agora entender-se com um nome para presidir ao Parlamento, cuja eleição será a 18 de julho.
A existir insucesso da NFP a entender-se para governar, por um lado, e do E/R em agregar-se a uma frente republicana para barrar a ultradireita, a possibilidade de passar o poder para esta, em próximas eleições, aumenta exponencialmente: a frente republicana conseguiria entender-se para bloquear (na frente eleitoral, da primeira para a segunda volta), mas não para gerar soluções (governo). Até porque a atração do fim do cordão sanitário não é só por parte dos LR de Ciotti: vários outros republicanos, nomeadamente o ex-primeiro ministro de Macron, Edouard Philipe, têm estabelecido «contactos» com Marine Le Pen… Mais, não é possível subestimar os cerca de 10 milhões de votos do RN, face aos cerca de 7 milhões de da NFP, e só se conseguirá enfrentá-los com sucesso com uma profunda mudança de políticas liderada pela frente vencedora das eleições, a NFP , face à era neoliberal de Macron (nesta linha, vejam-se as análises dos programas políticos que foram a votos, em Alternatives Economiques, nº 448-449, julho agosto de 2024, e ainda Natacha Polony, «Une fois q’on a effacé 37% du corps électorale, on fait quois?», Marianne, nº 1426, 9-17 julho de 2024).
Artigo originalmente publicado no Jornal Público, 19-7-2024.
Foto, fonte: logo do NFP 2024: aqui.
Em 24-7-2024, à beira do inicio do arranque dos Jogos Olimpicos de Paris (JOP), a NFP consensualizou finalmente a proposta de uma premier: Lucie Castets, 37 anos, cursou em Science Po (Paris) e na ENA. Oriunda da sociedade civil, não é membro de nenhum partido da frente NFP, tendo sido alta funcionária na direção geral do tesouro francês e sendo atualmente conselheira financeira na mairie de Paris. Foi o nome consensual proposto ontem pela NFP para liderar o governo francês… mas Macron não quer mudar nada até 15 de Agosto… e, num braço de ferro, para manter o seu centro (direita) no centro da política francesa, diz agora que não basta um nome… é preciso uma solução de aliança maioritaria para governar…. A luta segue agora (findos os JOP), de novo, dentro de momentos…
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