
10 Jun Um presidente para celebrar (e renovar) Abril
O presidente da Republica que os portugueses escolherem nas eleições que se avizinham irá ter a honra de encabeçar as celebrações do 50º aniversário do 25 de Abril. A longevidade do regime saído da Revolução dos Cravos, e o seu balanço altamente positivo, são motivo de orgulho para todos os Portugueses. Mas nada é eterno. E parar é morrer. A projecção deste regime no futuro carece de um esforço reformista que parta de um balanço das muitas realizações de que fomos capazes em confronto com os poderosos desafios que se erguem. A actual pandemia veio por a nu algumas debilidades do nosso tecido social, cultural e económico. Será tarefa fundamental do Presidente da Republica mobilizar os Portugueses para esse debate e para as tarefas de transformação política, social, cultural, ambiental e económica que temos pela frente, a partir de três eixos fundamentais. Um tal esforço vai muito para além de um inspirado discurso ocasional – exige um compromisso permanente com a actualização dos propósitos da nossa Revolução
A primeira letra dos revolucionários de Abril era o D de Democratizar. Sendo certo que a democracia é uma utopia em constante renovação, ganhamos o essencial dessa batalha. Temos um regime constitucional (com a Constituição de 1976 a ultrapassar em longevidade a do Estado Novo) baseado em eleições livres e regulares. Asseguramos a liberdades fundamentais e o pluralismo politico. Criamos o poder local democrático. Olhando com orgulho para o que fizemos, não podemos escamotear que a proporcionalidade na atribuição de mandatos prescrita pela Constituição é deficiente. Temos escandalosos níveis de abstenção. Os direitos de intervenção cidadã visando “o aprofundamento da democracia participativa “ (CRP Art 2) são restritos. Não cumprimos o mandato constitucional de criar Regiões administrativas que aproximem os cidadãos dos seus eleitos e os convoquem a participar nas decisões que mais os afectam. Emerge sob os nossos olhos um discurso profundamente anti-democrático que promove uma cultura autoritária. É tempo de agir! Como diz a CRP, “a Republica Portuguesa é um Estado de direito democrático baseado na soberania popular, no pluralismo, na expressão e organização política democrática, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais”. Não basta por isso proclamar em abstrato a existência de direitos de cidadania: é preciso lutar para lhes dar expressão concreta – e essa é uma luta permanente.
Outra letra era o D de Desenvolver. Muito foi feito na promoção de um Estado Social que atenda às necessidades de todos. No progresso da educação, na criação de um Serviço Nacional de Saúde, na cobertura universal da Segurança Social. Na criação de infraestruturas que proporcionam níveis acrescidos de conforto e segurança. Na modernização tecnológica. No entanto, Portugal mantém-se como um dos países com maiores níveis de desigualdades na Europa, perpetuando injustiças. Com um modelo de crescimento económico baseado em baixos salários e acentuada precariedade, tendo um salário mínimo nacional que pouco ultrapassa o que Revolução impôs em 1974. Com uma taxa elevada de tributação dos rendimentos do trabalho. Com gritantes assimetrias regionais. A tendência para responder com atitudes assistencialistas que escamoteiam o seu caracter estrutural é profundamente errada – apesar de por vezes confortar consciências individuais. Como nação, temos o dever de questionar o staus quo e propor verdadeiras reformas estruturais – no sentido daquelas que o 25 de Abril impôs – que emanem de uma forte aposta em valorizar o factor trabalho e a solidariedade territorial. O combate à desigualdade – que permanece em Portugal substancialmente acima da média europeia – exige políticas redistributivas. Um Estado Social forte e competente – não necessariamente mais “gordo” – é um desiderato legitimo, e isso requer capacidade de investir em soluções que privilegiem o colectivo (por exemplo, nos transportes, apoiar a ferrovia, as redes de metro e a modernização dos transportes urbanos e não políticas amigas do automóvel) em detrimento do individual. A pedra sobre o que tais políticas devem assentar é a valorização (pela educação, pela ciência e tecnologia, pela cultura) do capital humano
O terceiro D era o de Descolonizar. Na sua essência, encontra-se cumprido. Portugal tem hoje relações de estado a estado com todas as suas antigas colónias, e com todas elas colabora no seio da CPLP. Como outras potências coloniais, Portugal substituiu a relação de dominação sobre esses territórios por uma política de integração plena no espaço europeu. Essa viragem apresenta-se hoje como um esteio fundamental do modo de vida português. Se num primeiro momento a Europa apareceu como um oásis de solidariedade democrática, hoje em dia encontra-se num profundo impasse que clama por intervenções decididas. Os problemas do modelo europeu são inúmeros, desde a crise da ideia de democracia que hoje é espezinhada em vários estados-membros, ao profundo desequilíbrio que um desenho apressado da moeda única veio introduzir, passando pela desvalorização de políticas de coesão e insuficiente atenção quer os problemas ambientais quer ao lugar da Europa no mundo. Anuncia-se agora uma viragem, que, a ser confirmada, poderá dar um novo alento ao projecto europeu. Para isso é necessário que a via seguida nas últimas décadas, impondo uma matriz neoliberal contrária à liberdade de optar por políticas alternativas seja qual for o resultado das eleições e os programas sufragados a nível nacional, seja efectivamente abandonada. Que a arquitectura do Euro seja corrigida. Que os condicionalismos ideológicos impostos por Bruxelas não se sobreponham a um modelo de desenvolvimento elaborado de forma participativa. Portugal tem assumido um papel reivindicativo quando os seus interesses imediatos são postos em causa. Fá-lo sobretudo em manobras de bastidores, longe da mobilização de vontades para sustentar uma agenda reformista. Impõe-se dar ao esforço reformista um caracter alargado e de base popular. A Europa não pode ser só a burocracia de Bruxelas e os ditames de políticas orçamentais restritivas. Portugal tem, pelo seu passado intimamente ligado a uma utopia europeia de democracia solidária, razões de sobra para integrar e mesmo encabeçar um tal movimento. Trata-se de mobilizar a cidadania activa para a necessidade de repensar a arquitectura de uma Europa que defenda o seu legado histórico e a projecte no mundo globalizado como um território de decência e solidariedade.
Quem pode protagonizar uma plataforma como esta, alternativa à continuidade de protagonismos acomodados? Os portugueses tem evidenciado uma clara preferência por personalidades que se apresentem como garantes de um exercício apartidário do cargo. E tem castigado quem assim não se comporta, como foi o caso de Cavaco Silva, que deixou o cargo com o seu prestigio seriamente abalado, ou com os candidatos marcadamente partidários que raramente lograram resultados em linha com o das suas organizações. A apresentação de candidaturas presidenciais com viabilidade depende, em primeira linha, da vontade dos próprios, e da sua capacidade para articular plataformas que transcendam as fronteiras partidárias para se inscreverem num esforço de mobilização da cidadania. É precisa coragem. As próximas eleições serão difíceis. A tradição atribui favoritismo aos presidentes que se recandidatam. Mas as eleições presidenciais são também momentos de surpresa. Como disse Mário Soares: “Só é derrotado quem desiste de lutar”. Jorge Sampaio demonstrou como a convergência das esquerdas – fenómeno raro em eleições presidenciais que no entanto tendem a articular-se em torno da oposição esquerdas / direita – pode alavancar uma candidatura vitoriosa. Uma vitória seria a afirmação de vitalidade de um programa reformista para reinventar Abril. A criação da geringonça em 2015 deu um passo significativo para que tal fosse novamente possível. Cabe a quem acredita na necessidade de mobilizar Portugal para renovar Abril empenhar-se na construção dessa alternativa popular. Ou preferimos enterrar a cabeça nas pequenas (in)certezas que nos confortam o dia a dia?
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