02 Jan Um governo com fraca coerência ideológica, uma oposição bilateral
No período 2015-2019, tivemos o governo da «Geringonça», ou seja, um governo minoritário do PS, mas apoiado numa maioria de esquerdas consubstanciado em acordos parlamentares escritos com a esquerda radical (BE, PCP e PEV). Foi um governo que superou todas as expetativas, quer entre os seus detratores, quer até entre os seus apoiantes. Gerou estabilidade, ou seja, cumpriu toda a legislatura, algo que, no passado, as alianças (formais, PS-CDS 1978-1979 ou bloco central 1983-1985, ou informais) do PS com os partidos à sua direita nunca tinham conseguido. Recuperou salários, pensões e direitos dos trabalhadores, dos cortes 2010-2015, reverteu privatizações, aumentou o investimento nos serviços públicos, fez crescer a economia e reduziu o desemprego. E cumpriu as normas europeias, nomeadamente em termos de correção dos desequilíbrios em matéria de finanças públicas, não pondo em causa os alinhamentos geopolíticos de Portugal (UE, OTAN).
Nas eleições de 2019, o PS passou a partido mais votado, mas com maioria relativa. O BE manteve o número de deputados e teve um ligeiro refluxo de votos. Tal como nas autárquicas (2017) e nas europeias (2019), o PCP-PEV teve um refluxo em votos e lugares, embora tal não tenha sido assacavél (apenas concomitante) à participação na «Gerigonça»: a maioria dos portugueses queria a reedição da Geringonça 2019-2023 (sobretudo entre as esquerdas e os indivíduos sem simpatia partidária). Seja como for, perante o refluxo eleitoral, o PCP e o PEV recusaram acordos escritos com o PS para a nova legislatura. Mas a nova maioria relativa do PS permitia compor maioria absoluta só com o BE e este último partido propôs-lhe um acordo de legislatura, que desse estabilidade e coerência política à nova maioria. Naturalmente, o BE propôs um caderno de encargos, como não podia deixar de ser, onde estava, entre outras coisas, uma reversão das leis laborais aprovadas no tempo da troika (nomeadamente em termos de indeminização por despedimento), a que o PS se tinha então oposto, ou da precarização dos novos contratos (duração longa do período probatório). O PS ainda começou a negociar com o BE, mas cedo fez colapsar as negociações. Este encetar de negociações infirma a ideia de alguns altos dirigentes do PS que disseram que sem o PCP e o PEV não faria sentido reeditar a «Geringonça». Outros altos dirigentes do PS defenderam que o caderno de encargos do BE era demasiado maximalista e daí o colapso das negociações. Todavia, o PS não fez qualquer contraproposta, o que significa que não queria efetivamente reeditar a «Gerigonça», pois sabia que só podia ser derrubado por alianças entre a esquerda radical e as direitas.
O preço a pagar pela falta de um acordo de legislatura é uma estabilidade precária, que ventos desfavoravelmente fortes (como os da pandemia e dos seus efeitos socioeconómicos) e melhores sondagens para as direitas (Chega incluído) facilmente podem fazer perigar, e, sobretudo, maiorias ad-hoc e sem coerência política e ideológica, vulgo um «governo pisca-pisca» (ora pisca à esquerda, ora pisca à direita). Desde 2019, já tivemos dois orçamentos (2020 e 2021) «aprovados» à esquerda (embora o último já com a oposição do BE: voto contra), um orçamento suplementar de 2020 com apoio «arco-íris» (apoio do PS, e abstenção do PSD, BE, PAN e deputada não inscrita Cristiana Rodrigues), e vários acordos do PS com o PSD (regionalização minimalista plebiscitada por conluio; redução dos poderes do parlamento nos debates com o primeiro ministro e sobre a Europa, limites à participação cidadã nas petições, pacote de medidas sociais anti-COVID19). O orçamento para 2021 foi o prenúncio do que pode continuar e vir de novo: além do PS, o apoio (via abstenção) ficou reduzido ao PCP-PEV, PAN e duas deputadas não inscritas; ou seja, o governo passou a ter uma oposição bilateral (das direitas e do BE) e a estabilidade é ainda mais precária. Mais: as 1000 e tal propostas de alteração espelham bem a manta de retalhos que é governar sem acordos. Marcelo já disse que, se for reeleito, quer consensos alargados (apelo a acordos improváveis do PS com as direitas, e mais incoerência ideológica) e, se necessário, dará posse a um governo de direitas com apoio do Chega. Ou seja, ou muda a relação do PS com todas as esquerdas (e vice-versa), ou o governo pode não só estar a prazo como também a governar com legislação que lhe é imposta por coligações negativas (vide o caso Novo Banco), apesar da «Bazuka» europeia que supostamente aí vem.
Texto originalmente publicado originalmente no Jornal de Negócios, 31-12-2020, na seção «20 olhares sobre 2020 e as lições para o futuro».
Foto: fonte blogue ITuga.
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