30 Out Um conto de fadas
Leio hoje o DN de ontem, e na segunda coluna da página 13, ao alto, há um título que me despertou particular atenção – Liberdade de escolha: mais primeiras consultas até Agosto http://www.dn.pt/portugal/interior/mais-de-66-mil-doentes-ja-foram-tratados-no-hospital-que-escolheram-5469449.html. Incluída num trabalho exclusivamente dedicado ao hospital Gama Pinto, a jornalista aproveitou o espaço que lhe tinha sido destinado para fazer menção a outro acontecimento. Surpreendentemente, afirma a jornalista, mas só “uma pequena surpresa”, o Instituto Gama Pinto aparece como uma das primeiras cinco preferências dos utentes que utilizam aquela modalidade de acesso. O facto, porém, não deve surpreender ninguém dado ser o único instituto público dedicado à oftalmologia.
Além daquele instituto, e isto é o mais relevante, os polos predominantes de atracção da liberdade de escolha estão a ser os hospitais do Porto e Lisboa. Esmiuçados os dados, verifica-se que esta liberdade está fortemente associada à quilometragem, como seria de esperar, e a outros custos directos associados, seguramente. Será por essa razão que os principais contribuintes para esta liberalidade da tutela da Saúde são dos centros de saúde do Vale do Sousa, a 60 quilómetros do Porto e de Famalicão, a 42 quilómetros; de Santarém, a 80 quilómetros de Lisboa, de Sintra, a 29 quilómetros e da Amadora a 13,5 quilómetros. E também não será surpreendente que as 66 000 primeiras consultas realizadas naqueles hospitais, ao abrigo desta modalidade, dado o raio de acção da liberdade de escolha, representem 6% do total de primeiras consultas por eles realizadas. Que conste, não se verificaram fluxos de doentes de Miranda do Douro para o Porto, nem de Almeida para Coimbra, nem de Barrancos para Lisboa. Esses vão ter de se amanhar com o que têm à mão.
O que politicamente de facto interessa nesta medida é o reconhecimento de que em vastas áreas do país deixou de se verificar a cobertura universal em cuidados hospitalares, tendo-se criado, para a substituir, a figura da liberdade de escolha. Para quem não tem, ou tem muito limitadamente, oferta hospitalar local às necessidades de saúde, a legislação cobre as respostas autorizando que ande a bater de porta em porta, por via do seu médico de família, para que alguém a/o coloque numa lista de espera com menos dias, menos semanas ou menos meses de espera.
A realidade é que o SNS recuou na estrutura da resposta hospitalar, com o sector privado a passar, por exemplo, de 19% da oferta de consultas externas para 31%, em dez anos (INE, estatísticas da saúde, 2005-2014), e realizando já 50% de toda a ginecologia e obstetrícia, oftalmologia, ortopedia, medicina física e reabilitação, e 90% de toda a medicina dentária. Daí não ser surpreendente que, na medida dos seus recursos, haja doentes que tomem a iniciativa e escolham fazer umas dezenas de quilómetros, a verem agravada a sua condição de saúde. Essa é que é a liberdade de escolha, mas não devia ser assim.
Em síntese, esta liberdade de escolha constituiu-se para dar cordialmente a conhecer que o SNS está em declínio e que a vontade é pouca para o reabilitar e requalificar, mau grado as promessas, as declarações, as entrevistas e as conferências. O que é particularmente surpreendente e lamentável num governo saído dos acordos de 10 de Novembro de 2015.
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