TOSTÕES

TOSTÕES

A certa altura do seu discurso, dirigindo-se à Câmara dos Comuns, Churchill afirmou aos deputados: “Direi à Câmara o mesmo que disse aos que entraram para este Governo: só tenho para oferecer sangue, sofrimento, lágrimas e suor.” Foi a 13 de maio de 1940 e a França tinha sido derrotada poucos dias antes pelos exércitos do III Reich. É daquele fragmento do discurso de Churchill que deriva a expressão mais resumida “sangue, suor e lágrimas” utilizada por vários políticos em tempos de crises extremas e recentemente aproveitada pelo candidato à Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas para exprimir o que tinha para oferecer aos lisboetas.

O candidato tinha a obrigação de conhecer o contexto em que aquela afirmação foi pela primeira vez utilizada, e apesar de banalizada e repetida a torto e a direito, à laia de muleta retórica, era sua obrigação ter tido mais recato quando pensou em utilizá-la. Oferecer suor, ainda vá que não vá, que estamos a entrar na época estival. Agora sangue e lágrimas, quando não há europeu, americano, asiático, africano, australiano, esquimó, que não queira visitar a cidade é não ter lido o Ensaio sobre a cegueira, o que é indesculpável para quem apresenta um curriculum académico tão vistoso. É que não estamos nem num confronto entre ideologias nazi e conservadora, nem perante uma guerra de agressão e conquista. Conservador no sentido de professar a ideologia dos girondinos, sem dúvida. Contudo, nunca cometeria a injustiça de o considerar nazi, em qualquer das conotações que se possa dar à ideologia. Não estou a ver Carlos Moedas a contruir fornos crematórios na Fundação Calouste Gulbenkian.

O paralelismo que quis utilizar, embora se perceba que não passa de retórica eleitoral, no limite do desespero político, é particularmente infeliz porque em caso algum estamos frente a situações similares, nem próximo delas. Oferecer sangue, mesmo metaforicamente, ao eleitorado é o mesmo que, no caso de vitória, os lisboetas irem ter pela frente um mandato de permanente conflito, traduzido no desmantelamento do que até agora foi feito por Lisboa desde 2005, o ano em que a direita perdeu as eleições para António Costa, e que dificilmente recuperará se investir no programa da extrema-direita. Uma vez que Carlos Moedas pretende, pelos vistos, ultrapassar pela direita tudo quanto está à sua direita, esse é também o significado daquela expressão, arrasar com tudo o que foi feito pelo que está à sua esquerda. Mas essa promessa é, simultaneamente, o caminho que o vai levar a uma humilhante derrota que deverá ficar suficientemente gravada na história da sua carreira política.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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