09 Jun Socialismo Selvagem: Uma História do Anarquismo
- Introdução
A obra O Socialismo selvagem. Ensaio sobre a auto-organização e a democracia direta nas lutas de 1789 até aos nossos dias, Antígona, novembro de 2019, da autoria de Charles Reeve, apresenta uma história das pulsões libertárias desde a Revolução Francesa até aos nossos dias. Charles Reeve é o pseudónimo de Jorge Valadas. Tendo desertado da guerra colonial, em 1967, Valadas foi viver o maio de 1968, em França, ao lado das «correntes antiautoritárias»; acompanhou também os movimentos pacifistas de oposição à guerra do Vietname, nos EUA. De regresso a França, tornou-se eletricista de profissão, tendo desde então publicado vários ensaios e participado em vários jornais e revistas de intervenção política. O livro, que combina análise histórico-política com muito proselitismo, é obviamente uma obra empenhada politicamente nas ideias e práticas libertárias. O livro está muito bem documentando, apesar de um recurso muitíssimo grande a fontes de cariz anarquista, e está também bastante bem escrito, apesar de repisar demasiado determinados assuntos. Ou seja, alguma economia na exposição teria sido desejável, permitindo reduzir significativamente as suas 368 páginas sem perdas analíticas. A obra aborda, com uma grande profundidade histórica, um conjunto de temáticas muito relevantes para a compreensão da política contemporânea, apesar de se focar em correntes ultraminoritárias, geralmente situadas à esquerda das esquerdas dominantes (isto é, de socialistas, comunistas e restante esquerda radical). Vejamos sinteticamente alguns dos tópicos fundamentais abordados no livro.
- As heranças da Revolução Francesa
O «socialismo selvagem» tem dois pontos centrais na sua abordagem programática. Por um lado, uma abordagem socialista de base na arena económica. Ou seja, defendem a coletivização da produção e, sobretudo, dos meios de produção, e não a nacionalização dos meios de produção. Ou seja, advogam uma colocação em propriedade comum dos meios de produção, mas sempre feita de baixo para cima, não a partir do Estado e poder estatal (como defendem e praticaram os comunistas e, em menor medida, os socialistas). Ao longo do livro, são inúmeras as equiparações daquilo que chamam o «capitalismo de estado», característico das sociedades do «socialismo realmente existente», ao modelo do «capitalismo privado» / do capitalismo ocidental. Trata-se, portanto, de uma defesa da coletivização económica feita de baixo para cima, estruturada por associações livres de produtores, depois por sua vez associados numa espécie de federalismo económico de base coletivista, muito mais na linha de (Pierre-Joseph) Proudhon do que na senda de (Karl) Marx.
Mas o ponto programático central do «socialismo selvagem» diz respeito à defesa da democracia direta em oposição ao modelo da democracia representativa, pois é ele que estrutura tudo o resto nas doutrinas anarquistas e que mais claramente se liga à herança da revolução francesa. Talvez o debate mais central no seio da Revolução Francesa, deixando de lado a oposição das forças liberais aos reaccionários defensores do regresso ao passado, tenha sido entre as forças defensores de uma rutura suave com a ordem política anterior e de uma latitude limitada para o «povo legal» (sufrágio censitário e/ou capacitário), os Girondinos, e as forças Jacobinas (Montanheses) que defendiam uma rutura profunda e imediata com o absolutismo monárquico, uma visão mais inclusiva do povo (sufrágio universal, masculino) e medidas intervencionistas fortes para combater a crise social e económica. Porém, o ponto em que se coloca o «socialismo selvagem» é, na linha de Jean- Jacques Rosseau, o da cisão entre os que recusam o regime representativo, dando eco político às reivindicações populares dos raivosos (enragés), ou seja, às correntes libertárias ligadas à comuna revolucionária (criada em agosto de 1792, após os tumultos que põem fim à ordem aristocrática nas Tulherias), e que se opõem às forças defensoras do regime representativo (Girondinos e Jacobinos). Ou seja, para os anarquistas a soberania não pode ser delegada, e por isso combatem desde a Revolução Francesa o regime representativo e a ideia do mandato não imperativo (dos representantes).
- Exemplos históricos das pulsões libertárias
Outro dos eventos políticos emblemáticos para as forças libertárias é a Comuna de Paris de 1871. Além da coletivização de baixo para cima, em termos políticos a defesa do mandato imperativo e a oposição ao regime democrático representativo encontra forte eco na Comuna de Paris: os representantes executivos, quando existem, são eleitos em assembleia para tarefas circunscritas, funcionando mais como delegados do povo (mandato imperativo) do que como representantes autónomos (mandato representativo, não imperativo), sendo, por isso mesmo, os seus cargos de curta duração e os seus mandatos revogáveis a qualquer momento. Outros exemplos históricos apresentados como momentos ilustrativos da defesa da democracia direta, pugnada pelas forças libertárias e não só, são a Rússia dos Sovietes, antes da corrupção resultante do controle de cima para baixo perpetrado pelo PCUS, ou as revoltas troskistas e anarquistas na República de Weimar (1918-1921). Neste contexto, outros expoentes máximos para as forças libertárias são a oposição operária à Grande Guerra, a defesa do sindicalismo revolucionário e a organização político-social assente nos conselhos operários, bem como as experiências anarquistas na II República Espanhola (paradoxalmente também no governo).
Outro ponto interessante neste excurso histórico diz respeito ao 25 de Abril de 1974, e à interpretação do mesmo numa perspetiva anarquista. Após o golpe de estado dos capitães segue-se, segundo Reeve, um grande enfraquecimento do Estado, contexto favorável à eclosão de movimentos de massas não controlados partidariamente, apesar das tentativas do PCP em controlar essas pulsões libertárias. Ou seja, as maiores conquistas sociais do 25 de Abril, associadas aos movimentos de moradores e de trabalhadores e às ocupações de casas, de empresas e de terras, deveram-se à pressão dos movimentos de massas espontâneos no contexto revolucionário. Quer a pulsão libertária, quer a comunista, serão liquidadas pelo «segundo golpe militar» do 25 de novembro de 1975, o qual instaura definitivamente o modelo do «capitalismo privado».
- Exemplos contemporâneos das pulsões libertárias
Na época contemporânea, um evento emblemático das doutrinas e das práticas anarquistas é o maio de 1968, em França, pois representa uma contestação às organizações político-sociais burocráticas, hierárquicas e estruturadas de cima para baixo. Por um lado, são as movimentações estudantis não controladas pelas esquerdas tradicionais, e reprimidas pelo poder gaulista. Por outro lado, são as sublevações selvagens dos trabalhadores (não controladas pelos sindicatos tradicionais, nomeadamente pela CGT) com as suas ocupações de empresas, o sequestro de quadros, as solidariedades trabalhadores – estudantes, etc. Tudo supostamente em nome da contestação da autoridade e da burocracia organizacional, ou ainda em nome da contestação das autoridades tradicionais nos costumes e, como corolário, em nome da recuperação da soberania individual e coletiva (mais democracia, democracia direta). Reeve reconhece, porém, que o desejo de contestação das burocracias autoritárias poderá ter levado a um certo fetichismo da democracia de assembleia, à recusa das organizações tout court em vez da simples recusa das organizações autoritárias, e poderá, portanto, ter levado a um certo bloqueamento na dinâmica revolucionária.
Mas Reeve vai mais longe e considera que há uma teia de conexões invisíveis entre todos esses movimentos libertários, desde a Revolução Francesa até aos movimentos contemporâneos, sejam eles a experiência zapatista no México, em 1994, com o seu lema de «transformar a sociedade sem tomar o poder», os novos movimentos sociais surgidos a partir do contexto da Grande Recessão (nomeadamente o 15-M dos Indignados, o Occupy ou o Nuit Debout), ou ainda as Primaveras Árabes. E àqueles que consideram todos estes movimentos libertárias como ultraminoritários, sobretudo se permanecem fora do terreno político, sem uma política de alianças políticas e sociais e, portanto, globalmente irrealistas e sem hipóteses de saírem vitoriosos, Reeve responde que irrealistas são todos os que consideram reformável o sistema representativo e o modelo do capitalismo privado atual com o seu rol de desigualdades sociais e de usurpação de soberania crescentes.
André Freire
Publicado originalmente na coluna «Heterodoxias Políticas», Jornal de Letras, quinzena 20 de maio a 3 de junho.
Fonte da imagem: editora Antígona.
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