Sobre as eleições presidenciais (2)

Sobre as eleições presidenciais (2)

No texto que aqui divulguei na passada semana, defendi a ideia de que a presidência da República tem um estatuto preciso dentro do sistema político português. Por um lado, temos a conjuntura em que foi definido o papel do PR, combinando um legado histórico multifacetado, considerações de natureza política resultantes do processo revolucionário, e ainda elementos de cultura política; por outro, a evolução do sistema partidário, que se veio paulatinamente a estruturar em torno de lideranças que aspiram ao cargo de primeiro ministro – tudo isso confluiu para fazer emergir a presidência da República como um elemento de poder que não se deve confundir com poder executivo, legislativo ou judicial. Tem sido proposto que a presidência se encare como a representação do “poder moderador” teorizado por Benjamin Constant no século XIX, cabendo-lhe um papel activo nos equilíbrios institucionais, sobretudo pela sua capacidade de exercer “horizontal accountability“. Assente esta idea, que implicações tem nas eleições destinadas a escolher o PR? É disso que tratei neste texto.

Mário Soares foi o primeiro PR civil depois de 60 anos de presidências militares. Foi o primeiro PR depois da revisão constitucional de 1982, que redefiniu o quadro de competências de todos os orgãos de soberania. De certa forma, Mário Soares contribuiu para uma definição do papel do PR no sistema politico português como nenhum outro presidente. O que salta à memória é o seu discurso na noite da vitória: proclamou que a “maioria presidencial” se esgotava nessa mesma noite; anunciou a suspensão da sua filiação no seu partido de sempre; e proclamou-se “Presidente de todos os Portugueses”. Estava dado o mote. Ao PR não cabe – de acordo com a tipologia de Duverger – nem ser o líder da maioria política, nem o da minoria. Pelo contrário, o PR é um elemento que se pauta por outras considerações. Ficou assim enterrada a fórmula de Sá Carneiro (que o próprio PSD abandonara na revisão constitucional de 1982, mas que por vezes ainda reemerge das trevas) “uma maioria, um governo, um presidente”. Cavaco Silva tentou ressuscitar tal fórmula no seu segundo mandato, mas como tive ocasião de referir, o sonho de Sá Carneiro tornou-se um verdadeiro pesadelo para Cavaco. A tese de Soares, que tem tido vencimento, é a de que deve existir uma distância entre o PR e os partidos políticos, sem com isto negar que o PR tenha vida política própria fora do combate partidário que tem como palco privilegiado o parlamento

É verdade que Soares se fez eleger enquanto era secretário-geral do PS. Mas foi uma eleição especial: não só era conhecido o seu desacordo com parte importante do partido no que toca a eleições presidenciais, como Soares iniciou a sua caminhada “por fora”, mobilizando independentes, e só mais tarde recebendo o apoio partidário (e mesmo assim, algo recalcitrante…) quando era evidente que a sua candidatura estava no terreno. Nunca mais nenhum líder partidário logrou ser eleito PR. Sampaio era um ex-líder com uma posição conflitual com o líder do seu partido, e lançou a sua candidatura de forma independente do partido; Cavaco tentou a eleição com uma imagem muito colada à liderança do PSD e falhou, voltando dez anos mais tarde numa posição bem diferente – recordem-se os artigos com que se distanciou de Pedro Santana Lopes…E Marcelo foi a votos com o apoio formal de PSD e CDS, mas com uma visível animosidade contra si protagonizada por Passos Coelho e Paulo Portas. Luís Paixão Martins, um expert em marketing eleitoral, referiu um dia que, “quando um politico profissional se que apresentar a eleições presidenciais, a tarefa dos técnicos de marketing  é a de criar uma imagem de independente” (Expresso, 6 de Junho de 2015). Na verdade, a opinião publica valoriza a independência – mais ou menos real, mais ou menos fingida – dos candidatos a PR.

Vejamos. A eleição presidencial, até por exigir uma maioria absoluta dos votos, tem uma dinâmica muito própria, e tende a ser disputada por dois blocos: direita contra esquerda. Apenas uma vez, depois de 1982, tal não se verificou: foi com a reeleição de Soares em 1991. A Direita só por duas vezes não se apresentou unida atrás de um candidato. Sucedeu em 1991, quando o PSD apoiou a reeleição de Soares, deixando campo livre para o CDS apoiar Basílio Horta (com sucesso relativo, uma vez que parte importante da base do PSD não se revia na actuação do PR); e em 1996, quando Manuel Monteiro declinou subscrever formalmente Cavaco, apesar de figuras importantes do CDS lhe terem facultado o seu apoio (como Paulo Portas), e sem que tenha surgido nenhuma outra candidatura à direita. Em 1986 escolheu um antigo líder do CDS, Freitas do Amaral, que se havia afastado do partido e logrou provocar a disputa de uma segunda volta, caso até hoje singular em eleições presidenciais em Portugal; em 2001, PSD e CDS apoiaram um militante social-democrata, Ferreira do Amaral; em 2016 e 2011, apoiaram Cavaco Silva, já então com uma persona política distanciada da liderança partidária; e em 2016, Passos e Portas tiveram de se atrelar à candidatura de Marcelo, que apresentava uma plataforma política substancialmente distinta da que eles preconizavam. A esquerda tem tido uma posição contrária: apenas uma vez se apresentou com uma convergência em torno de um só candidato. Foi o que sucedeu em 1996 com Jorge Sampaio, que logrou assim ser eleito à primeira volta. Em todas as outras eleições, a esquerda tem apresentado candidatos vários. O resultado desta atitude não tem sido – argumento eu – o melhor: perdeu as três ultimas eleições e certamente caminha para um resultado semelhante em Janeiro de 2021

Admite-se que haja lugar a “primarias da esquerda” – como terá sido o caso em 1986. Mas o modo como os partidos das esquerdas tem abordado a questão não parece ser a mais indicada. Olhando para as ultimas eleições presidenciais (desde 2001), o que vemos?

O PCP tem apresentado sempre um candidato próprio, vinculado à bandeira partidária. Em 2001, António Abreu obteve 223 mil votos, enquanto o PCP obteria nas legislativas mais próximas 487 mil (1999) ou 380 mil (2002); em 2006, Jerónimo de Sousa obteve  466 mil, contra os 433 mil  votos das legislativas de 2005; em 2011, Francisco Lopes chegou aos 300 mil, comparáveis aos 447 mil das parlamentares de 2009, e aos 442 das de 2011; e finalmente em 2016 Edgar Silva quedou-se por 183 mil, comparáveis aos 445 mil das legislativas de 2015. Com a excepção de Jerónimo de Sousa, nenhum candidato presidencial comunista chegou sequer perto do resultado do seu partido em eleições legislativas

Quanto ao BE, logo em 2001 Fernando Rosas foi a votos com a bandeira partidária, e obteve 130 mil votos (3%), enquanto o BE teria em legislativas 137 mil (1999) e 154 mil (2002); em 2006 Francisco Louçã obteve 288 mil votos contra os 365 do partido nas legislativas de 2005; em 2016 o partido apresentou Marisa Matias que chegou a 470 mil, enquanto o BE lograra nas legislativas imediatamente anteriores mais de 550 mil votos. Também no caso do BE, é evidente que o partido obtém sempre melhores resultados nas legislativas do que nas presidenciais

Os dados apresentados acima podem ser contestados: afinal, as eleições presidenciais costumam ter níveis mais elevados de abstenção. É certo. Mas as diferenças assinaladas são, na esmagadora maioria dos casos, muito superiores ao que a projecção da abstenção deixaria antever. Acresce que os partidos da esquerda radical são, em principio, menos influenciáveis pela oscilação da abstenção: o seu voto é considerado como mais ideológico e militante, e menos susceptível de variar como o dos partidos do centro-esquerda e centro-direita. É uma evidencia: os partidos da esquerda radical tem dificuldades em “segurar” o seu eleitorado nas eleições presidenciais a que se apresentam com candidaturas partidárias

É bem verdade que estes partidos não tem o exclusivo desta situação.O PS viveu momentos dramáticos em eleições presidenciais neste século. Em 2006, Mário Soares, desfazendo-se da imagem que havia conquistado, e apresentado-se como candidato marcadamente partidário, não foi além do terceiro lugar nas presidenciais, ao passo que o seu PS havia ganho as legislativas anteriores com maioria absoluta. E em 2016 uma candidata – Maria de Belém Roseira – que reivindicava para si a bandeira do partido (que não apoiou nenhum candidato em particular) não foi além de uns modestíssimos 197 mil votos. Parece confirmar-se a sina de quem quer empunhar bandeiras partidárias em eleições presidenciais.

As eleições a que me tenho vindo a referir apresentam uma outra característica complementar da que tenho sublinhado: o sucesso (relativo) de candidaturas “independentes”. Em 2006, o socialista desalinhado Manuel Alegre foi além do milhão de votos, ficando muito próximo de obrigar a uma segunda volta. Nessa eleição ficou em segundo lugar, bem à frente do candidato oficial do PS. Em 2011 foi a vez de surgir outro “independente” na área do centro-esquerda com simpatias na familia socialista: Fernando Nobre focou proximo dos 600 mil votos. Manuel Alegre, apoiado formalmente por PS e BE, quedar-se-ia por pouco mais de 830 mil votos, bastante menos do que no ano da sua candidatura “independente”. E em 2016, António Sampaio da Nóvoa, com simpatias na esquerda socialista e apoiado formalmente apenas por pequenos partidos como o LIVRE, voltou a superar a fasquia do milhão de votos.

Dir-me-ão: o que se viu foram derrotas das esquerdas.É verdade. Mas é também verdade que, no seio da derrota, alguma coisa se pode aprender. E uma das lições é a simpatia do eleitorado por candidatos que prefigurem presidências não alinhadas partidariamente. Como confirmação, há a indicação de que candidaturas abertamente partidárias nem a sua suposta base de apoio conseguem mobilizar.

As esquerdas em Portugal vem de uma experiência inédita em mais de quarenta anos de democracia: a geringonça. Logo após a sua criação, em finais de 2015, as esquerdas não projectaram esses entendimentos nas eleições presidenciais – e perderam. Hoje, parece difícil, se não mesmo impossível, que a geringonça ressuscite para as próximas presidenciais. Mas podíamos evitar o triste espectáculo de cada um por si, erguendo bandeiras que possam assemelhar-se a muros. Ainda há tempo de preparar uma candidatura que se inscreva na matriz própria das presidenciais e responda aos anseios da grande família política das esquerdas plurais. O PR pode e deve ter família política. Não deve é ter partido.

 

 

Rui Graça Feijó
ruifeijo@gmail.com

Desde que acompanhei os pais a um comício da CDE nas eleições de 1969, com 15 anos de idade, tenho deambulado pelas esquerdas (Pró-associação dos liceus do Porto, LCI, UEDS, MASP I e II, Clube da Esquerda Liberal, PS - de que fui vereador na CMPorto com o Fernando Gomes - campanhas presidenciais de Jorge Sampaio, Manuel Alegre - infelizmente só a segunda, que estava em Timor em 2005 como adjunto do Xanana - e António Sampaio da Nóvoa, e ainda MIC/Porto, CDA, Movimento 3D, Tempo de Avançar, Forum Manifesto. Um verdadeiro peregrino! Agora regresso aos tempos de vida no campo (em criança e em adulto) e olho pasmado para a Vaca Voadora. Ah! E sou historiados/investigador em ciências sociais e políticas, com uma recente agregação em "Democracia no Século XXI"" (FEUC/CES)

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