
19 Jun Sobre as eleições presidenciais (1)
A Assembleia Constituinte de 1975-1976 escolheu para Portugal um sistema politico que, à época, tinha muito pouca expressão a nível mundial: o semi-presidencialismo. Designa-se desta forma o sistema que é baseado numa dualidade de poderes entre um Presidente da República, eleito por sufrágio directo, e um governo que depende, pelo menos em parte, do assentimento de um Parlamento também ele eleito directamente. Foi quase um tiro no escuro, que correspondeu muito mais a leituras das circunstâncias históricas que se viviam do que a elaborados cálculos teóricos. Sistemas parlamentares com eleição indirecta do PR por um colégio eleitoral encontravam-se associados à turbulência e instabilidade da I República, que não se queria repetir. O presidencialismo, mesmo que apenas no seu sentido mais formal, tinha sido a escolha do Estado Novo, e por isso não se recomendava. Acresce que a experiência histórica da contestação ao regime autoritário por via de candidaturas presidenciais como as de Norton de Matos e sobretudo a de Humberto Delgado, assumiam um carácter simbólico que era util recuperar. A ampla mobilização popular que acompanhou a Revolução Portuguesa veria com maus olhos a hipótese de não ser chamada a pronunciar-se sobre a designação do chefe de Estado e a participar directamente nessa escolha. Portugal possui uma cultura política onde a personalização do poder e da autoridade assume um caracter vincado que, pelo menos desde o advento do constitucionalismo oitocentista, tem atravessado diferentes regimes politicos. Tudo isto num contexto em que, como diz o politólogo Jean Blondel, “o presidente pode contribuir significativamente para a legitimação do regime na medida em que ele controla a instituição que tem maior visibilidade política”. E em 1976 tratava-se mesmo de legitimar o novo poder democrático que tinha diferentes actores, nomeadamente os militares que haviam derrubado o Estado Novo e, mais adiante, infligido uma derrota aos sectores mais radicais da Revolução; e, por outro lado, os partidos políticos que – com a excepção do PCP – tinham então uma base social bastante ténue devido á sua extrema juventude. Os militares de 25 de Novembro poderiam ganhar legitimidade eleitoral a nível da presidência da República, que usariam em paralelo com a sobrevivência do Conselho da Revolução, ao mesmo tempo que se abriam as portas para que os partidos hegemonizassem o parlamento e, através dele, o governo. A dualidade de poderes inerente ao semi-presidencialismo aparecia então como uma hipótese de combinar, através da facilitação de um certo bonapartismo, os actores militares e civis, pelo menos num período de transição. Sucede que, como bem observou John M. Carey, decisões tomadas nas etapas iniciais de processos políticos longos tem muitas vezes a capacidade de se transcenderem, e de soluções aparentemente conjunturais passarem a fazer parte do ADN ou código genético do regime, e tenderem a estabelecer balizas que perduram para além das circunstâncias em que nasceram. Creio bem que isso mesmo se passou em Portugal, apesar de uma revisão constitucional (em 1982) que introduziu alterações no modelo específico de semi-presidencialismo com que se pôs termo formal ao período de transição. A eleição de Mário Soares em 1986 marcaria um novo arranque, completamente dominado agora por civis – pela primeira vez desde 1926! – mas sem introduzir uma ruptura significativa.
Entretanto, a vida política portuguesa tinha vindo a estruturar-se solidamente em torno de um PR que não representava, na cúpula do Estado, interesses partidários directos (sendo que a figura de um militar ajudava a projectar essa imagem de “independência” em relação ao mundo partidário), enquanto os partidos políticos, por seu turno, se organizavam em torno de líderes que aspiravam, em primeira linha, ao cargo de primeiro ministro – característica que ainda hoje se mantém nos seus traços mais expressivos. Apenas um cidadão que era formalmente líder partidário logrou até hoje ser eleito PR – Mário Soares em 1986 (com apoios diversificados que iam muito para além das fronteiras do seu partido, e um histórico de conflitualidade com o partido em matéria de presidenciais). Logo na noite da sua eleição, afirmou que “não existe maioria presidencial”, e entregou o seu cartão de militante para poder desempenhar o cargo como “presidente de todos os portugueses”. Jorge Sampaio apresentou a sua candidatura à revelia do partido, que foi “obrigado” a dar-lhe o seu apoio, sendo que foi o único candidato das esquerdas que conseguiu ser apoiado por todos logo à primeira volta, o que alargou o seu apelo eleitoral. Cavaco Silva, quando apareceu como rosto do PSD em 1996 foi amplamente derrotado, e dez anos mais tarde re-emergiu como vencedor depois de ter estabelecido uma significativa distância entre a sua pessoa e a liderança dos partidos de direita, avançando antes de qualquer formalização de apoios partidários. O caso de Marcelo Rebelo de Sousa é igualmente significativo: a plataforma eleitoral com que se apresentou a votos não era, de todo, aquela que a liderança dos partidos de direita desejavam – e diga-se em abono da verdade, cumpriu o seu mandato em obediência aos princípios que anunciara e não se vergou às pressões de Passos Coelho e Paulo Portas. Mesmo sabendo-se que as eleições presidenciais, em razão da necessidade dos candidatos obterem a maioria absoluta dos votos (contrariamente ao que se passa com eleições legislativas, que muitas vezes resultam em maiorias relativas) são quase sempre disputadas em torno da clivagem Esquerda/Direita (a única excepção pós-1982 é a re-eleição de Mário Soares que contou com o apoio do centre-direita), são inúmeros os casos em que os PRs se distanciaram das posições dos seus partidos. Exemplos? Em 1987 Mário Soares não convidou Vítor Constâncio para formar governo depois do derrube do executivo minoritário de Cavaco Silva. Em 2004 Jorge Sampaio não dissolveu a Assembleia da República na sequência da demissão de Durão Barroso, e em 2005 não convocou o referendo ao aborto proposto por José Socrates. Podia, como é obvio, alargar bastante o campo destes exemplos
No sistema politico português é muito claro que o papel do PR não é o de ser chefe do executivo. Cavaco Silva, no seu segundo mandato, tentou recuperar a fórmula de Sá Carneiro – “uma maioria, um governo, um presidente” – mas nunca logrou retirar o protagonismo principal a Passos Coelho. E deu-se mal com a aventura: acabou o seu exercício do cargo com popularidade negativa (quando o normal é para os presidentes atingirem elevados níveis de aceitação pública). Também não é o de serem chefes da oposição, como naqueles modelos semi-presidenciais em que os PRs são lideres partidários (como em França). Mesmo quando emerge uma clara dissonância entre PR e primeiro ministro – como foi o caso no segundo mandato de Mário Soares – as iniciativas do PR não são necessariamente as que o seu partido de origem estaria à espera: o Congresso Portugal: que futuro? não foi uma iniciativa partidária e até certo ponto foi concorrente dos Estados Gerais organizados pelo PS. Maurice Duverger admitia que os PRs pudessem caber em três categorias: chefes da maioria politica; chefes da minoria com a qual teriam de “cohabitar”; e PRs sem maioria. Para estes últimos, o célebre cientista político francês via a hipótese de serem detentores do “poder moderador” que Benjamin Constant teorizara no início do século XIX , a par de Louis Adolphe Thiers, que por sua vez recuperara uma expressão feliz do teórico e estadista renascentista polaco Jan Zamoysky: rex regnat sed non gubernat, ou seja: o rei reina mas não governa. Constant foi uma fonte explicita da Carta Constitucional de 1826, que segundo alguns constitucionalistas constitui uma das bases teóricas do modelo politico contemporâneo em Portugal.
Reinar sem governar é uma arte de equilíbrio que não desdoura a importância que o PR assume no sistema de tomada de decisão em Portugal. Desde logo, porque o governo depende do PR. É ao PR que cabe a nomeação do PM e dos ministros – ou a não nomeação. Vítor Crespo e Vítor Constâncio são dois exemplos de políticos que dispunham de apoio parlamentar maioritário e não lograram ser nomeados PM. António Costa deve a sua primeira nomeação ao facto do PR estar limitado na sua capacidade de dissolver o parlamento, e tal como Pedro Santana Lopes, foi nomeado sob estreitas balizas impostas pelo PR (que ele soube bem contornar…). E o PR dispõe da faculdade de terminar o mandato do PM, tanto por via da demissão (em circunstâncias especiais, mas que em ultima análise remetem para um juízo que só ao PR cabe fazer, e que ninguém pode sindicar), como pela dissolução do parlamento (sendo que aí o feitiço se pode virar contra o feiticeiro, se o PM lograr vencer as eleições subsequentes, o que enfraqueceria significativamente o PR). Também compete ao PR a promulgação – ou o veto – de toda a legislação, sendo que ultrapassar um veto presidencial requer no mínimo uma maioria absoluta de deputados em efectividade de funções, e em vários casos, uma maioria de dois terços – o que significa que a palavra presidencial tem muito peso. Ao PR assiste também o direito a ser permanentemente informado sobre toda e qualquer matéria de interesse público (lembremos que Cavaco protestou com José Socrates por este ter escondido a iniciativa do PEC IV, escrevendo palavras duríssimas nas suas memórias). Acima de tudo, ao PR assiste o direito à palavra – quer formal, em diversas circunstâncias, quer informal, com apoio sobretudo nos media- e com ele a capacidade de influenciar a agenda política e de se relacionar directamente com a cidadania. Como dizia há tempos um assessor político de Belém (não deste presidente…), quem pensa que a letra da Constituição esgota os poderes presidenciais não percebe nada do que são os poderes presidenciais.
Assim se configura um lugar muito especial para o PR dentro do sistema de equilíbrio de poderes em Portugal. Entre muitas outras consequências, este figurino contribui substancialmente para formatar a ideia que os portugueses formam acerca do que é e deve ser a actuação presidencial. E essa ideia tem tradução no modo como encaram o seu voto em eleições presidenciais – que entendo ser diferente daquele que exibem no quadro de eleições legislativas. Na próxima semana dedicarei um texto a analisar as implicações deste figurino institucional no comportamento eleitoral. Que é como quem diz: a pensar em voz alta o que pode e deve ser feito para intervir na arena eleitoral com hipóteses de sintonizar com parte importante do eleitorado. Até para a semana, amigos!
No Comments