Portugal low-cost

Portugal low-cost

Está em curso um forte processo de desvalorização salarial que atinge fundamentalmente as profissões mais qualificadas das classes médias, sobretudo desde 2022, mas que acumula com a ausência de aumentos reais de salários desde 2009 até 2021. Este processo não só contraria um dos compromissos políticos prioritários do PS nas legislativas de 2022 («Aumentar até 2026 o peso das remunerações no PIB em 3% para atingir o valor médio da União Europeia – aumentar o rendimento médio por trabalhador em 20% entre 2022 e 2026», in PS – António Costa, 12 Prioridades para os Próximos Quatro Anos) como põe em causa a qualidade no funcionamento dos serviços públicos, como se vê nos casos do SNS, mas também da Escola Pública. Mas o problema é extensível a outros sectores, nomeadamente no Ensino Superior e Investigação.  Pelo contrário, quer os estrangeiros, quer os rendimentos de capital, quer alguns servidores públicos muito circunscritos, têm recebido um tratamento de favor.

Antes de detalhar a questão da desvalorização salarial, comecemos por definir o que são as classes médias, algo que se faz com base na profissão e situação na profissão e não com base em medianas de rendimento: nas classes médias altas, temos as profissões científicas e técnicas (professores, investigadores, médicos, enfermeiros, juristas, arquitetos, etc.), em regime de profissão liberal quando independentes, assalariadas nos outros casos; nas classes médias baixas temos, fundamentalmente, os empregados administrativos, os assistentes técnicos, etc. Ver J. Urry e N. Abercrombie (1983), Capital, Labour and the Middle Class, Londres, Routledge.

Durante o governo do PS, no poder desde 2015, houve uma reposição dos cortes de direitos e de rendimentos herdados dos tempos da Troika, 2011-14, nomeadamente reposição dos cortes e descongelamento de carreiras para os funcionários públicos, bem como um ligeiro desagravamento fiscal em sede de IRS. Não houve quaisquer aumentos salariais no sector público (2015-19), com duas exceções: aumentos reais do salário mínimo, absolutamente justificados; aumentos reais dos salários de juízes e magistrados, em 2019, e depois repetidos em 2023 (via subsídio de compensação), num claro tratamento desigual e injustificável face aos demais servidores públicos. Nos primeiros exercícios a solo do PS, 2020-22, os aumentos dos salários na função pública seriam feitos de forma generalizada, mas apenas ao nível da inflação esperada, nomeadamente 0,3% e 0,9%. De novo, apenas o salário mínimo teve aumentos reais. Já em 2022, para uma inflação de cerca de 8%, tivemos aumentos de 0,9%, ou seja, uma forte desvalorização salarial real, a qual acumula com uma ausência de aumentos reais de salários desde 2009. Em 2023, os grupos mais qualificados das classes médias assalariadas do setor público tiverem aumentos de 3%, em 2023 (para uma inflação de cerca de 5%), para repetir em 2024 (apesar de a inflação se estimar entre 3%-4%). Portanto, os grupos socioprofissionais mais qualificados têm sido altamente penalizados com a governação do PS desde 2022. As classes médias baixas têm sido bastante menos penalizadas em sede de aumentos salariais.

Pelo contrário, os rendimentos de capital, bem como os estrangeiros (residentes não habituais, nómadas digitais, vistos gold), têm recebido um tratamento muito mais favorável em sede fiscal, apesar de os problemas com as finanças públicas serem transversais a toda a sociedade portuguesa. Sabemos que os sectores da banca, da distribuição e das petrolíferas têm conhecido enormes lucros desde o início da Guerra da Ucrânia. Por um lado, à ideia de taxar os lucros excessivos, o governo resistiu até onde pode, mas perante a imposição europeia, lá concedeu em final de 2022 (mas ainda sem regulamentação no verão de 2023); sucede que já se apressou a retirar a medida do orçamento para 2024, como se a inflação já estivesse debelada. Mais, no setor privado, sejam os aumentos do salário mínimo, seja o aumento médio dos salários de 5% durante a legislatura (2022-2026), são pagos através de descidas de IRC, ou seja, são pagos pelos contribuintes portugueses. Mais, só em 2023, por pressão dos partidos à esquerda do PS o governo propôs acabar com os vistos gold, mas mesmo assim deixando alçapões na lei… e ao mesmo tempo que tem penalizado fortemente os grupos mais qualificados dos Estado, o governo propôs, em 2023, um regime fiscal altamente favorável para os nómadas digitais. E mesmo o fim das taxas de IRS altamente favoráveis para os «residentes não habituais» (reformados e etc.), com taxas entre 10% e 20%, anunciado em outubro de 2023, só se aplica para os novos «residentes não habituais». Ou seja, os portugueses têm não apenas taxas de IRS muito mais altas (nas classes médias altas, 30%-40%) do que os estrangeiros referidos, como podem também ver os seus regimes mudados anualmente, enquanto os «residentes não habituais» podem manter o que têm por 10 anos.  Portanto, o governo do PS tem sido um campeão do tratamento desigual dos portugueses, nomeadamente no seio da administração pública, mas também em sede de tratamento fiscal dos assalariados e do capital, muito mais favorável a este último, bem como dos estrangeiros face aos portugueses, muito mais favorável aos primeiros. Mais: este tratamento fiscal privilegiado dos estrangeiros está também por detrás da alta dos preços da habitação nas grandes cidades. Mas o quadro dos baixos salários em Portugal, este paraíso low-cost, não ficaria completo se não referíssemos que os salários mais baixos, que o governo tem privilegiado (e bem) nos aumentos salariais, geralmente não dão sequer para viver e, por isso, é precisa uma miríade de apoios sociais e subsídios que, além de não chegarem a todos, são indignos. Ou seja, as pessoas trabalham, mas os salários não chegam para viver e, por isso, tem que ser alvo de uma política paternalista e assistencialista. Esta está, aliás, em contradição com a Declaração de Princípios do Partido Socialista (2003), que afirma que os socialistas portugueses são «radicalmente contrários às lógicas assistencialistas que, de facto, perpetuam a pobreza e a exclusão.».

Autores:

(*) André Freire – Politólogo, Professor Catedrático de Ciência Política do ISCTE-IUL;

(**) Daniel Adrião – Doutorando em Ciência Política no ISCTE-IUL, membro da Comissão Nacional do PS.

Texto saído originalmente no jornal Público de 19-10-2023: ver aqui.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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