Portugal, 5 de Outubro de 2020: que República?

Portugal, 5 de Outubro de 2020: que República?

5 de Outubro de 2020. A nossa República faz hoje 110 anos. É tempo de celebrar. E que perguntar: mas que República é esta?

A Republica moderna nasceu com a Revolução Americana e a constituição de 1787, inspirada, é certo, na longínqua Republica Romana, anterior à Era Comum. Várias vezes esse exemplo latino se havia manifestado na história europeia, como nas Republicas da Península Itálica tardo-medievais e renascentistas. Mas é a partir de finais do século XVIII que uma forma de Estado que tem como seu chefe um presidente escolhido pelos cidadãos de modo regular e frequente caminha para se tornar no modelo dominante que hoje é a nível mundial. Primeiro, fazendo seu o terreno fértil do continente americano; depois, estendendo-se à Europa; mais recentemente, atingindo a Asia e sobretudo a África pós-coloniais. Portugal instaurou uma República precisamente há 110 anos, sendo na altura o terceiro país da Europa – depois da tradicional Suíça e da França – a arvorar esta distinção. A Espanha é um exemplo de país europeu que, tendo proclamado uma Republica antes de Portugal, a vira sucumbir (1873-1874), situação que se viria a repetir no século XX (1931-1939). Hoje a maioria dos estados que compõem a União Europeia é composta por Repúblicas. O mesmo se diga, do ponto de vista exclusivamente formal, sobre as nações que integram as Nações Unidas. E o regime saído do 25 de Abril só é mais novo que as Repúblicas de França, Itália (mesmo que aqui se fale hoje de II Republica, sucedânea nos anos 1990 da que se formou no imediato pós-guerra), Alemanha e Irlanda

A etimologia da palavra República aponta num sento semelhante ao da democracia. Res publica, a coisa publica, está no centro do ethos republicano. No entanto, a relação entre regimes republicanos e a democracia é altamente problemática, e é certo que a democracia convive bem com monarquias constitucionais. O problema não deriva apenas do carácter estruturalmente contestável da noção de democracia que desenvolvi num estudo recente (Democracia: linhagens e configurações de um conceito impuro. Porto, Afrontamento, 2017). Vai mais longe, e poderia colocar-se nestes termos: se o presidente não for escolhido livremente pelos cidadãos, como a definição de Republica presidencial moderna parece indicar, será que o regime em causa, para além do seu aspecto formal, deve ser considerado verdadeiramente como uma República? Argumento que a resposta deverá ser negativa. E assim, há uma relação entre o ethos republicano no sentido que lhe empresta a sua definição moderna e as características identificadoras de um sistema politico de natureza democrática. Se a existência de um chefe de Estado com a designação de presidente da República é um  traço distintivo desse regime, o facto deste dever ser escolhido regular e frequentemente pelos cidadãos dispondo de condições de liberdade de opção é igualmente estruturante

Como havemos de compreender a(s) nossa(s) Republica(s) no quadro da história de Portugal desde 1910? Uma primeira constatação consiste em afirmar que nunca a República foi formalmente abolida e/ou substituída por qualquer outra forma de Estado. Houve várias tentativas monárquicas – mormente a “Monarquia do Norte” em 1919 – e Salazar manteve os seus amigos monárquicos na esperança que haveria de se inclinar para uma restauração do poder régio durante várias décadas. A Espanha pós-guerra civil é um exemplo de como um regime politico pode sobreviver décadas sem uma clara definição do seu tipo ideal: Franco como “Caudillo de Espanha” e chefe de Estado de facto não assumiu nem o titulo de rei nem o de presidente.  Muitos outros exemplos, sobretudo de regimes de “homem forte” na Europa entre as guerras, poderiam ser apresentados. República não é a única alternativa a monarquia – embora estes sejam os dois tipos de regime mais bem definidos. E por isso mesmo, convém manter a integridade e complexidade da sua definição, sem cairmos em reducionismos.

A verdade é que sempre em Lisboa vigorou um regime que, pelo menos formalmente, se reclamava como sendo uma República. Este facto é tributário do profundo impacto que a República de 1910 teve no país, apesar da sua vida efémera e turbulenta.  Seguindo uma voga que tem em França o seu exemplo original, designamos geralmente – e sem controvérsia – o regime saído do 5 de Outubro como a I República. Na verdade, em França a implantação da República (1792) foi entrecortada por momentos de substituição do regime quer pelo Império napoleónico e pela monarquia dos Bourbon, quer pelo II Império de Napoléon III, quer ainda por Pétain durante a II Guerra Mundial, pelo que é usual a referência a uma série numerada de Repúblicas. A passagem da IV para a V República (que está em vigor desde 1962) , no entanto, deu-se por substituição da constituição, tendo uma República sucedido imediatamente à outra. A Espanha também usa este sistema para designar as suas experiências republicanas

A nossa I República foi um regime que não só adoptou a figura do presidente para ocupar a chefia do estado, como o fez ser escolhido regular e frequentemente por parte da cidadania. Não é necessário que a eleição do chefe de estado de uma República seja eleito por sufrágio directo. Há muitos casos de eleição por colégio eleitoral, ele próprio detentor de legitimidade eleitoral. Em Portugal, entre 1910 e 1926, apenas um dos presidentes – Sidónio Pais – foi eleito por sufrágio directo. Podemos mesmo referir que a República terá sido mais o que hoje designaríamos por regime liberal e do que democrático, uma vez que a extensão do sufrágio foi, quase sempre, inferior à que vigorava em finais da monarquia constitucional. No entanto, nem por um momento pensamos em abandonar a sua justa classificação como I República em virtude da convergência de princípios republicanos e democráticos.

Há uma segunda – e não menos importante – razão para que assim seja. Na verdade, é usual que os regimes políticos assumam uma auto-definição, ou mesmo até um título. Em Portugal, o regime do 5 de Outubro sempre se designou a si próprio como República. Assim sucedeu também com a Ditadura Militar (1926-1928) e com a Ditadura Nacional (1928-1933), que ainda hoje desse modo se designam – e muito bem.  Creio que é uma convenção que se deve respeitar. Assim sucedeu também com o Estado Novo, regime corporativo, anti-parlamentar e de “democracia orgânica” (1933-1974) que se auto-intitulou e quis assim ser (re)conhecido. No caso do Estado Novo, a conjugação entre o seu desejo de auto-referenciação e as características do regime que o afastam claramente da escolha do presidente, figura cimeira que nele não vigorou, de forma livre pela cidadania é razão suficiente para que o afastemos de uma classificação positiva como República.

Qual é então a República em que vivemos?

Na academia portuguesa o regime em que vivemos actualmente é por vezes referido como II República, outras como III República. No campo politico-partidário, porém, a expressão III República é predominantemente associada a forças de direita, mormente as da direita radical que lutam pela “IV Republica” que substitua a actual constituição e o edifício politico sobre ela construído. Poderia dar-se o caso de ser um caso de coincidência de posições com justificação na tradição historiográfica. Não creio: creio sim que o uso da expressão III República para designar o actual regime parte de uma desvalorização do ethos republicano que partilhamos com o regime saído do 5 de Outubro, e em tudo contrastante com o do Estado Novo que seria, sem o ter querido, a tal II República. Quem assim desvaloriza o sentido de coisa publica inerente ao republicanismo, e pelo contrário se fixa num elemento formal desgarrado do seu ethos, abre portas a repetições do mesmo sentido, ou seja, a regimes autoritários que dispensem a democracia liberal que é traço de união entre os regimes que se situaram imediatamente antes e depois do Estado Novo. E por isso, além de representar uma injustificada quebra das convenções que os historiadores, bem ou mal -mas acho que bem – estabeleceram, é politicamente controversa e não deve ser seguida.

Eis porque eu acho que nós vivemos – orgulhosamente – na II República Portuguesa. Talvez lhe pudéssemos dar outras designações, sempre complementares, como “democrática” (indiscutível) ou “constitucional” (que também o é). Mas a singela designação que melhor a retrata é, sem dúvida, II República Portuguesa

 

Rui Graça Feijó
ruifeijo@gmail.com

Desde que acompanhei os pais a um comício da CDE nas eleições de 1969, com 15 anos de idade, tenho deambulado pelas esquerdas (Pró-associação dos liceus do Porto, LCI, UEDS, MASP I e II, Clube da Esquerda Liberal, PS - de que fui vereador na CMPorto com o Fernando Gomes - campanhas presidenciais de Jorge Sampaio, Manuel Alegre - infelizmente só a segunda, que estava em Timor em 2005 como adjunto do Xanana - e António Sampaio da Nóvoa, e ainda MIC/Porto, CDA, Movimento 3D, Tempo de Avançar, Forum Manifesto. Um verdadeiro peregrino! Agora regresso aos tempos de vida no campo (em criança e em adulto) e olho pasmado para a Vaca Voadora. Ah! E sou historiados/investigador em ciências sociais e políticas, com uma recente agregação em "Democracia no Século XXI"" (FEUC/CES)

No Comments

Post A Comment

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.