Populismo (II): Um Programa Político para a Esquerda?

Populismo (II): Um Programa Político para a Esquerda?

  1. Introdução

No texto que hoje dou à estampa analiso mais um livro sobre o populismo. Este foi escrito por uma proeminente politóloga belga radicada no Reino Unido, a qual parte de uma abordagem ligada à teoria política, e a meio caminho entre o pensamento e a ação, Chantal Mouffe (CM): Por um populismo de esquerda, 2019. Esta minha prosa vem na linha de outra que escrevi para o JL, na primeira quinzena de outubro de 2019, «Populismo (I): Um Programa Analítico», e que se debruçava sobre um outro livro também editado pela Gradiva e sobre o mesmo tema: Cas Mudde e Cristobal Rovira Kaltwasser (CM e CRK), Populismo, Uma Brevíssima Introdução, 2017.

Vimos, então, da grande oportunidade destes dois livros: por um lado, dada a utilização comum do conceito de populismo de forma imprecisa e indefinida; por outro lado, dada a utilização desse termo como arma de arremesso político. Verificámos, também, que o livro de CM e CRK dava um relevantíssimo contributo na primeira dimensão, mas continuava algo permeado pela luta política ao dar uma visão predominantemente pejorativa do populismo. O segundo livro, de CM, avança também com formas de precisar o dito conceito, mas além disso pretende fornecer um programa político positivo para a esquerda, com uma abordagem populista. Trata-se, pois, de dois excelentes livros sobre a temática do populismo, antagónicos em muitos aspetos, porém.

  1. A definição de populismo em Chantal Mouffe e o seu projeto político

Recordemos os traços centrais atribuídos por CM e CRK ao conceito.

Primeiro, a conceção do populismo como uma ideologia. Segundo, uma oposição entre o povo, com diferentes compleições segundo os diversos contextos, mas sempre apresentado como homogéneo e íntegro, e a elite, também ela com diversos perfis e constituições consoante os contextos, mas sempre oligárquica e tendencialmente corrupta. Terceiro, uma «ideologia de baixa densidade» que precisa de «ideologias hospedeiras» para se definir em termos de políticas, ou seja, para se definir como estando alinhado à esquerda ou à direita. Finalmente, CM e CRK reconhecem a forte pulsão democrática no populismo (com o primordial apelo ao povo e à soberania popular), mas consideram-no tendencialmente lesivo da democracia liberal pois tende a rejeitar as limitações (liberais) da vontade da maioria (ou seja, tende a ser contrário à ideia do governo limitado cara ao liberalismo político).

Na linha dos seus vários trabalhos anteriores sobre o tema, Chantal Mouffe (CM), ao contrário de CM e CRK, concebe o populismo não como uma ideologia, mas sim como uma forma de fazer política, podendo assumir múltiplas formas e sendo compatível com vários enquadramentos institucionais (pp. 22-23). Em segundo lugar, considera que vivemos um «momento populista», sobretudo desde a Grande Recessão (de 2008 em diante) e a crise das dívidas soberanas (na Europa), com a contestação da hegemonia neoliberal e do consenso «pós-democrático», ou «pós-político», ou seja, com a contestação de traves mestras do neoliberalismo e da alternância bipartidária ao centro (pp. 18-19). E, dado esse «momento populista», é necessária, para CM, uma estratégia populista de esquerda para contestar a hegemonia neoliberal a partir de uma visão progressista, igualitária e soberanista (ou seja, radicalmente democrática).

Para CM, a estratégia populista justifica-se pela necessidade de uma estratégia transversal de polarização, uma «política adversarial» entre «o eles» (a elite oligárquica, os vencedores da globalização, os beneficiários do neoliberalismo) e «o nós» («o povo», as várias categorias socioeconómicas e culturais tendencialmente perdedoras e/ou dominadas com a globalização e/ou com o neoliberalismo), entre dominantes e dominados, que construa «o povo» a partir de uma cadeia de equivalências entre posições dominadas (em termos de classe social, género, minorias étnicas e sexuais, ambientalismo) Ou seja, a partir da heterogeneidade dos dominados, é preciso construir uma estratégia e um discurso unificadores para «construir o povo» através de uma visão contra-hegemónica.

Finalmente, numa abordagem muito interessante e inovadora definida como «socialismo liberal», ou «reformismo radical», CM pretende gizar uma estratégia capaz de conciliar a democracia (radicalizada) e o liberalismo político (a democracia liberal), mas contestando a hegemonia neoliberal, ou seja, assumindo um certo anti capitalismo (uma estratégia alegadamente próxima de forças como o Bloco de Esquerda, o Podemos, o Syriza, a França Insubmissa, ou o Labour de Jeremy Corbyn). Esta estratégia distingue-se quer da dos partidos social-democratas, definidos como «sociais liberais», que aceitam quer a democracia liberal quer o neoliberalismo hegemónico, quer da «política revolucionária» da extrema esquerda, que alegadamente rejeita ambos (pp. 55-60)

  1. Notas conclusivas

Chantal Mouffe considera o apelo populista (de esquerda ou de direita), com a sua

inerente pulsão democrática, como algo iminentemente positivo e absolutamente necessário no contexto atual. Por um lado, para se combaterem as limitações da democracia em prol do liberalismo (político e económico) nesta era de hegemonia neoliberal (ou seja, de tendencial domínio das lógicas dos mercados sobre todas as esferas da vida; e de domínio da componente liberal sobre a componente democrática propriamente dita, nos regimes demoliberais). Por outro lado, para se combater o domínio do consenso da alternância bipartidária sobre e o governo das sociedades ocidentais (ou seja, o consenso do «centro radical», da «terceira via», da aceitação da política nas bandas estreitas da globalização e da europeização, com fracas diferenças de projeto entre os grandes competidores políticos). Mesmo os estudos mais empíricos sobre o populismo reconhecem que as limitações à soberania popular resultantes da globalização e da europeização, bem como «a política do cartel» (ou seja, o consenso da alternância bipartidária) como estando por detrás do ascenso das forças e ideias populistas. O trabalho de CM pretende apenas dar um passo em frente, reconhecendo tal como positivo nos processos de regeneração democrática, e fazendo disso um programa político para a esquerda (pp. 32-34).

Mas porquê um populismo de esquerda? Primeiro, «para pôr fim à ascensão dos partidos populistas de direita é necessário dar uma resposta politicamente adequada por meio de um movimento populista de esquerda que reúna todas as forças democráticas contra a pós-democracia», não enjeitando a priori os eleitores dos partidos populistas de direita, «antes reconhecendo o núcleo democrático de muitas das suas exigências» (p. 32). Segundo, porque o populismo de direita combate a pós-democracia, mas não necessariamente o neoliberalismo, e pode facilmente desembocar num autoritarismo neoliberal e nacionalista (p. 34).

CM considera ainda que o apelo ao povo, a polarização entre a elite oligárquica e o povo dominado, é apenas uma estratégia discursiva adequada para combater a hegemonia neoliberal e a pós democracia. Todavia, a aparente homogeneização do povo numa espécie de categoria una é para CM apenas uma estratégia de mobilização que, na verdade, parte da heterogeneidade das sociedades através de uma articulação de posições subordinadas (em termos de classe, género, etnia, ambientalismo, etc.) com vista à construção de uma dinâmica e de uma visão contra-hegemónica. No fundo, trata-se apenas das tradicionais funções de agregação e articulação que os partidos sempre empreendem na política de massas. Claro que o trabalho de CM não está apenas permeado pelas lutas políticas, ele assume-se no centro da própria política. De qualquer modo, há um elemento que me parece menos bem conseguido: CM acusa as forças social-democratas de darem demasiada ênfase à classe social e pouca atenção às novas linhas de clivagem (de género, etnia, ambientalismo, etc.). Tradicionalmente, isso pode ter sido assim, mas não é o que vemos hoje em dia nos partidos social-democratas europeus com a política das identidades a sobrelevar a política de classe, ou, dito de outro modo, a políticas das identidades a secundarizar a política socioeconómica. Globalmente, porém, o livro de Chantal Mouffe é uma clara lufada de ar fresco no panorama atual, seja ele mediático, seja ele académico.

 

Artigo originalmente saído no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas» de André Freire, quinzena de 6 a 19 de novembro de 2019

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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