Panteãominices

Panteãominices

Trasladar os restos mortais de Zeca Afonso para o Panteão seria institucionalizar Zeca Afonso, qualidade que rejeitaria se pudesse ter uma palavra a dizer sobre o assunto. Para quem o conheceu, sabe, de certeza certa, que ele não acompanharia esta manifestação de vã glória. Instituição  para a qual já se faz fila para nela se entrar e ter lugar cativo, o Panteão é a reminiscência obsoleta de um certo elitismo criado para hierarquizar a memória daqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Porém, esta figura teve uma época e um contexto, quando se tornava fácil escrutinar quem reunia os atributos para merecer tal distinção. E sobretudo por que quem  reunia tais qualidades era uma pequena elite cujo extracto social  lhe permitia ascender  aos mais altos postos do Estado.

Hoje, no século XXI, considerando a democratização da vida social e política, esses atributos estão mais amplamente distribuídos, e são muitos milhares aqueles a quem cabe essa distinção, os que contribuíram para tornar a sociedade portuguesa mais evoluída, principalmente no campo da cultura e da ciência. E é porque a lista de figuras de relevo nos mais variados campos de acção é vasta que o panteonato se tornou uma categoria social caricata,  uma espécie de novo-riquismo  de papelão levado em ombros ao altar da pátria. É a memória colectiva que veio substituir a função do Panteão, que selecciona e mantém as referências cujos valores contribuíram para tornar o país melhor. É por serem exemplares que essas referências se mantêm na memória de todos nós.

Não teria sido necessário à SPA realizar um exercício de memória muito  exigente para concluir pelo disparate, agora e sempre, que constitui a sua proposta de querer levar Zeca Afonso para o Panteão. Tanto pelos seus traços de personalidade como pela rejeição que sempre mostrou às homenagens. E esse havia de ser o primeiro e mais importante critério para colocarem de imediato a ideia de lado. Só a ideia do cerimonial que o acto encerra teria  levado o Zeca a escarnecer de tamanha pompa e circunstância, ele que antes e depois da revolução foi o mais insubmisso dos insubmissos. Para quem cantou a formiga no carreiro, levá-lo para Santa Engrácia seria a suprema desconsideração por todo o trabalho que o andarilho nos deixou.

Continuemos, pois a cantar o Zeca, e a tê-lo como fonte de inspiração para o tanto que falta fazer. Ao Panteão os panteonáveis, ao povo o que é do Zeca.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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