Os direitos humanos não podem ir de quarentena!

Os direitos humanos não podem ir de quarentena!

Ante a pandemia que nos tem inquietado globalmente, sem excepção, há um ponto que tem de se vincar – é que esta não pode ser “almofada” para os abusos aos direitos humanos, nomeadamente os que se referem ao trabalho. Nem tão pouco o progresso da humanidade pode ser sujeito a “cercos sanitários”!
Na região Autónoma da Madeira (RAM) por exemplo (menciono-a no caso, por ser a realidade que de momento me é mais próxima, ressalvando no entanto que é bem possível que seja extrapolável ao resto do país) mais do que a componente clínica da Covid, assiste-se ao tempo do lay-off que – oficialmente! – atinge cerca de 150 mil pessoas trabalhadoras na RAM.
O alcance social, económico e político desta pandemia é de si inerentemente preocupante, mas quando se equaciona que em causa estão dinheiros públicos e que pairam dúvidas e incertezas sobre quem se candidatou e tem beneficiado dos mesmos, para mais quando os próprios governantes não facilitam a informação pública devida, essas preocupações avolumam-se . Para mais quando pairam no ar suspeições de fraude e abuso por parte de alguns agentes empresariais com a conivência governamental.
Ou como se explicaria de outro modo que alguns empresários, tendo recorrido ao lay-off, continuem a sujeitar os seus empregados a um trabalho ordinário?- quando nesta circunstância nenhum patrão tem qualquer “autoridade laboral” sobre o funcionário e, portanto, não tem lhe dirigir qualquer ordem ou instrução?! Ou que recorrendo ao mesmo, alegando dificuldades financeiras, comprem, porém, ações de outras empresas? Menciona-se, a exemplo, o divulgado pela Comunicação Social de um empresário dos cruzeiros do Douro que investiu em ações da TVI, quando concomitantemente dispensou uns tantos trabalhadores; mas também há casos de empregadores que desempregam os funcionários mas recorrem na mesma ao lay-off; e há ainda outros que fecharam as empresas no início do confinamento sem comunicar nada aos seus trabalhadores ou obrigando-os a tirar férias ou impondo-lhes unilateralmente a dívida de dias ao serviço ou não lhes pagando o salário de Março ou … tantas outras situações que apenas subjugaram quem trabalha para patrões que lucram avultadamente à custa da precariedade laboral a que sujeitam os seus próprios empregados. E neste contexto não é possível ignorar as grandes empresas com sede fiscal no estrangeiro mas que nestes tempos recorrem à subsidiação do Estado português, à mesma que condenam quando é atribuída aos desempregados, aos incapacitados para o trabalho, aos doentes e demais legítimos beneficiários sociais. À mesma que é tão só suportada pelos descontos de quem trabalha! Sim, porque são sempre e sobretudo os contribuintes a pagar esta factura! Já muitos dos empresários devedores são bafejados reiteradamente por prescrições de dívidas à segurança social, já para não falar de outros tantos que escondem os lucros para poderem beneficiar por estes tempos da modalidade do lay-off. E este dinheiro, o do lay-off, há que relembrar: não é dinheiro das entidades governamentais, é dinheiro dos descontos dos trabalhadores para a segurança social e portanto nem patrões nem o governo lhes estão a dar seja o que for ou a fazer qualquer favor nestes tempos de crise.
Far-se-á ideia – para além dos directamente afectados – do quanto estas situações marcam a vida de milhares de pessoas e respectivas famílias? Não é difícil o alcance da situação: é imaginar-se a auferir em torno de 600 euros mensais mais o montante similar do conjugue, sujeitos ambos a lay-off e com a subtração do orçamento familiar que pode chegar a um total de 300 ou 500 euros. E sem que as despesas com a habitação, com a alimentação e com a saúde e educação sejam aligeiradas – e quem vier alegar a questão das moratórias que se inteire da quantidade de famílias a quem nestas circunstâncias continuam a ser cobradas as prestações da casa. (chegam a envergonhar os trâmites burocráticos e diligenciais para tal “beneficio” que na verdade é um crédito que se pagará a alto custo no futuro…).
Estas situações têm incidido de um modo geral sobre todos os sectores (exceptuando o público e porventura o sector da construção, ao que se saiba) mas na RAM sobretudo no turístico, o marco monocultural da economia madeirense (representa cerca de 25% do PIB regional). E as monoculturas, historicamente, já comprovaram que não são uma solução económica viável a longo prazo e que tendem a, mais cedo ou mais tarde, ruir invariavelmente, com um desfecho de dramas e misérias sociais, e paralisação da economia. Na Madeira, concretamente, há a memória dos exemplos passados das monoculturas do Açúcar, dos Cereais, do Vinho…tão bem evidenciadas no livro do historiador Rui Nepomuceno “Monoculturas e crises de subsistência”.
Mas é também facto indignante que perante a presente crise socioeconómica o Conselho Social e Económico Regional, que se mobilizou recentemente para reuniões e resoluções, no respectivo relatório não conste uma única linha de apoio directo aos trabalhadores madeirenses! Mencionam-se apenas os apoios aos empregadores (referidos como os únicos impulsionadores da economia- que seria dos instrumentos de trabalho do patronato se não houvesse a venda da força e capacidade de trabalhado dos trabalhadores?!). E não deixa de ser ironicamente triste que pelo menos uma das vozes deste Conselho se intitule de socialista…convertendo este documento numa medida de propaganda que tem tudo de económica e nada de social – aliás que mais seria de esperar de um Conselho que “cozinhou” o vergonho montante do aumento do salário mínimo e as últimas alterações ao código de trabalho? Mas do facto de um trabalhador levar para casa apenas uma percentagem daquilo que ele mesmo produz bem inferior à do patrão (numa relação de cerca de 30% para 60%, respectivamente) não há qualquer menção ou proposta de reavaliação…
E tudo isto quando é imperativo que se valorize urgentemente a capacidade de produção da RAM, que é limitada, como mote essencial para a sustentabilidade e soberania regionais. E quando a extensão da actual crise justificam uma aprofundada abordagem institucional e governamental deste problema que é sem dúvida económico, mas sobretudo social.

 

(Imagem: Monumento ao Trabalhador Madeirense, Funchal)

 

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Sílvia Vasconcelos
vasconcelos.silvia@gmail.com

Médica Veterinária a concluir doutoramento em Ciências Veterinárias, componente biomédica sobre os benefícios dos animais para saúde mental dos seres humanos. Actualmente dirigente nacional e coordenadora regional do Movimento Democrático das Mulheres, foi também deputada pela CDU na Assembleia Legislativa da Madeira. Foi ainda actriz no Teatro Experimental do Funchal, integrando vários projectos artísticos de teatro e de televisão desde 1986.

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