Odemira: agressão ambiental, exploração imigrante e hipocrisia política

Odemira: agressão ambiental, exploração imigrante e hipocrisia política

Introdução

No contexto da cerca sanitária instaurada nas freguesias de São Teotónio e da Longueira – Almograve, maio de 2021, Odemira, em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV), o primeiro-ministro deu mostras de um grande cinismo e de uma grande hipocrisia políticas. Ou seja, ao declarar, enquanto anunciava as razões e os contornos da cerca sanitária,  que tal se devia, entre outros fatores, ao facto de viverem por ali muitos imigrantes, trabalhadores na agricultura, em condições degradantes e que não satisfazem as exigências básicas condizentes com os direitos humanos fundamentais (cito de memória), Costa omitia também a sua própria responsabilidade política direta. A verdade é que, por um lado, há um problema de exploração da mão-de-obra imigrante em Odemira. Mas, por outro lado, e a montante, há um problema grave de agressão ambiental em pleno PNSACV que, não só agride severamente o ambiente, como  prejudica a sustentabilidade do modelo económico e a compatibilização com outras atividades económicas fundamentais, nomeadamente com o turismo (ver Cidália Machado, O impacto imigratório no concelho de Odemira, Estudo para o Município de Odemira, 2016; e Maria Antónia Almeida, «The use of rural areas in Portugal: Historical perspective and the new trends», Revista Galega de Economía 2020, 29 (2), pp. 1-17). E António Costa é diretamente responsável pela situação porque a Resolução do Conselho de Ministros (RCM) nº 179/2019 veio autorizar, na zona para o Aproveitamento Hidrográfico do Mira (Perímetro de Regra do Mira – PRM), a triplicação das estufas dos então 1600 hectares (11% do PRM) para um máximo de 4800 hectares (40% do PRM, quando o máximo legal permitido são 30%), facto que aproximadamente triplica também as exigências de mão-de-obra (imigrante), sem que o concelho tenha condições habitacionais e de serviços públicos para servir condignamente tanta gente. E, por isso, Costa e o seu governo autorizaram então que os trabalhadores das estufas pudessem («transitoriamente»: durante dez anos) viver em contentores, dentro das explorações agrícolas, com 16 pessoas em cada contentor com quatro quartos (ver Helena Roseta, Público, 7-11-2019). Mas, como é sabido e alguns estudos têm demonstrado à exaustão, a sobrelotação no alojamento dos imigrantes do subproletariado rural da região inclui também as pessoas que vivem em casas e montes (ver Sandro Teixeira e João Carvalho, Relatório Final: O impacto da imigração no sector agrícola: o caso do Alentejo, estudo do CIES-IUL (PT/2018/FAMI/352)).

 

O PNSACV e a agressão ambiental da estufas

Segundo o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas), «O PNSACV ocupa uma superfície de 89.568,77ha (…) estendendo-se por uma faixa estreita do litoral – Costa Sudoeste – entre S. Torpes e Burgau. (…) A Costa Sudoeste (…) corresponde a uma zona de interface mar-terra com características muito específicas que lhe conferem uma elevada diversidade paisagística, incluindo alguns habitats que suportam uma elevada biodiversidade, tanto florística como faunística.»

            Por um lado, há naturalmente algumas dimensões positivas desta agricultura intensiva no PRM: a utilização da água no âmbito do Aproveitamento Hidrográfico do Mira, o crescimento económico na região e no país que induz, as exportações que gera, entre outras. Mas, por outro lado, há dimensões muito preocupantes deste modelo de agricultura superintensiva, sobretudo pelo seu carácter excessivo e não cumprindo muitas das regras básicas que os cidadãos comuns são obrigados a cumprir pelo ICNF. E qual é o problema de agressão ambiental gerado por tantas estufas? Nada melhor do que ler o movimento Juntos pelo Sudoeste, na petição que apresentou à AR para reverter a RCM nº 179/2019: porque permite a expansão desmesurada «de práticas agrícolas que apostam na utilização intensiva de água para rega, plásticos, fertilizantes e pesticidas sintéticos, e que dependem de uma longa cadeia de distribuição até chegar ao consumidor final, assim como da contratação de milhares de trabalhadores asiáticos, que têm acorrido à região em condições pouco claras. Neste âmbito, a RCM possibilita ainda a instalação de “cidades” de contentores para albergar trabalhadores dentro das explorações agrícolas, que podem vir a alojar mais 36.000 pessoas, além das 10.000 que se estima já estarem no território, ultrapassando regras de edificação que a restante população é obrigada a seguir.» A petição, «O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina não aguenta mais agricultura intensiva», foi apresentada à AR em 2-3-2020 (6000 assinaturas) e será discutida no plenário em 1-6-2021, data em que haverá também uma manifestação em frente à AR.
       A agressão ambiental gerada pela extensão desmesurada das estufas, existentes e em vias de crescimento se a RCM nº 179/2019 não for rápida e urgentemente revertida, bem como pela sua localização, veio também criar um modelo de desenvolvimento local de fraca sustentabilidade, nomeadamente porque de difícil compatibilização com outras atividades económicas fundamentais na região, nomeadamente com o turismo (ver Sandra Gonçalves, «Agricultura intensiva: população do concelho de Odemira teme pelo seu futuro», DN, 3-3-2020).

 

O excesso de população imigrante, os problemas de qualidade vida dos locais e dos imigrantes e a hipocrisia do governo

Claro que em zonas deprimidas e em vias de desertificação, há uns anos a esta parte, o melhor aproveitamento do PRM, com alguma agricultura intensiva e estufas, pode ser um meio adequado de estimular o desenvolvimento local, o crescimento económico e o aumento populacional, nomeadamente com a vinda de imigrantes. O problema é a escala desta agricultura intensiva e as necessidades de mão-de-obra imigrante que tal expansão gera: para uma população local de cerca de 26000 pessoas, segundo os Censos de 2011, e uma população imigrante legal estimada em cerca de 10000 pessoas, no início de 2020, já a viver sem condições de habitação condignas, atirar tal número para os 36000 (extra) é de uma irresponsabilidade suicidária. Mesmo na situação atual, não só não há condições de habitação condigna para tanta gente, como os serviços públicos nunca foram devidamente reforçados e qualificados para responder seja à população local, seja ao crescimento da imigração. Tal gera grande insatisfação entre a população local e pode mesmo alimentar, a prazo, o ressentimento político que alimenta a direita radical e extrema.

            Por tudo isso, termino fazendo minhas as palavras da petição supracitada: «Ao abrigo do Artigo 52.º da Constituição Portuguesa e em defesa dos valores intrínsecos do Sudoeste Português, cada um dos subscritores deste documento entende que o Estado deve proceder à revogação imediata da Resolução do Conselho de Ministros nº 179/2019 de 24 de Outubro, que estabelece condições manifestamente insuficientes para fazer face aos desafios desta região e que vem dar uma resposta descarada às exigências e pressões do ‘lobby’ da indústria agrícola intensiva, em vez de avaliar e debater seriamente a situação, e trazer soluções às preocupações reais da população e de outros sectores socioeconómicos fundamentais. Este movimento de cidadãos solicita também que sejam consideradas as recomendações do relatório do Grupo de Trabalho do Mira, constituído em Agosto de 2018, para avaliar a compatibilização da atividade agrícola no PRM com a biodiversidade, os recursos hídricos, a gestão do território e o ordenamento do PNSACV, inclusive os pedidos de reforço urgente dos serviços públicos, de saúde e infraestruturas, solicitados pelos autarcas de Odemira e Aljezur.»

 

Fonte: artigo originalmente publicado no Público de 27-5-2021, agora em acesso livre na VV!

 

 

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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