Obrigada a Maria Velho da Costa

Obrigada a Maria Velho da Costa

Como estreia neste blogue ocorreu-me fazer um tributo a Maria Velho da Costa  pois se é certo que guardo dela o talento literário pelas Novas Cartas Portuguesas e pela Myra, é a gratidão que lhe devo que mais me pesa. Gratidão por ter sido percursora – com outras tantas mulheres e homens, é certo – da assumpção de Liberdade que a minha geração – não obstante as falhas e recuos que ainda nos assistem – desfruta.

Através de Myra discorre-se  sobre a vida de uma personagem que, à semelhança de tantas (os) de nós se determina a contornar vulnerabilidades mesmo que para isso tenha de encarnar a ferocidade, sem contudo se destituir da capacidade de amar e de se libertar- a si e aos demais foragidos do modelo social que nos querem impor, onde prevalece tantas vezes o medo…É uma grande narrativa, a Myra, de uma profundidade arrebatadora e desconcertante mesmo sendo um drama que resume a imperativa fuga aos maus tratos e ameaças e a procura de (a)braços e proteção como se vivêssemos tão só para encontrar “a terra” que mais do que prometida nos é devida.

Mas é pelas Novas Cartas que se desvelam factualmente situações discriminatórias aliadas à ditadura e ao patriarcado machista e católico daqueles dias, que reduziam a condição feminina ao casamento e procriação. No ano em que nasci, três Marias retrataram as mulheres livres! As que por fim “fizeram greves de braços caídos e brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta; e que gritaram à vizinha que era fascista e que souberam dizer salário igual e creches e cantinas”. “As que gritaram muito e encheram as ruas de cravos” porque o demais, “disseram à mãe e à sogra” – “isso era dantes!”.

Mas mesmo ante a coragem e lutas da Maria Velho da Costa e das gigantescas Isabel Barreno e Teresa Horta, ainda hoje, volvidos 48 anos, a sociedade ainda assume contornos medievais no que concerne à discriminação de género. E é absurda, senão ridícula esta distinção, se atendermos à própria ciência, que resume a diferença de género pelo vigésimo terceiro cromossoma.

Se excluirmos a capacidade reprodutora feminina, a dissemelhança entre homem e mulher nem é real, constrói-se consoante as necessidades de cada sociedade. Na verdade, trata-se de uma luta implacável e desonesta entre a cultura e a civilização, que deveria tão só coincidir com os direitos humanos.

Porque na essência, os meninos não nascem “agressivos” nem as meninas “passivas”. Estes estereótipos são elaborações sociais, são predeterminações de conduta em função dos hábitos culturais. Homem e mulher são, assim, criações imaginárias, pois cada um de nós resume-se à soma do seu código genético com a educação recebida.

Mas a verdade é que a condição de Mulher não é ainda igualitária se nos debruçarmos na questão dos Direitos, consagrados a qualquer ser humano. Pior, assiste-se a um retrocesso das conquistas para a igualdade.

A mulher continua a ser discriminada e ainda se assiste, inclusive, à “feminização” do emprego” (elas são maioritariamente secretárias, engomadeiras, educadoras, trabalhadoras de limpeza) e à “masculinização” maioritária das chefias. A sociedade, ainda hoje, não permite oportunidades laborais iguais a ambos os sexos. Ainda hoje, as mulheres auferem salários significativamente mais baixos para trabalhos similares, quando está instituído constitucionalmente que para trabalho igual salário igual!

Sim, a remuneração média mensal base das mulheres comparativamente à auferida pelo género masculino, é ainda inferior em todos os sectores de actividade; as mulheres têm menos promoções e ocupam a maioria dos trabalhos precários e são também as primeiras a ser despedidas em momentos de crise ou pandemia, liderando percentualmente o desemprego.

Mas também são as mulheres as primeiras a renunciar ao seu trabalho quando chegam os filhos. Não é possível criar um bebé de meses e cumprir o horário laboral por inteiro se o companheiro não participar de forma igualitária. As mulheres assinam, sobretudo, contratos de curta duração; as mulheres são dissuadidas de enveredar pela maternidade, sendo-lhes sonegado o direito de decidir livremente entre ser trabalhadora e mãe, forçando-as, pelas circunstâncias, a adiar a maternidade, ou a optar pelo filho único ou mesmo a renunciar a ser mãe. Até já assiste a uma espécie de chantagem, ou coação, para o adiamento da maternidade, em troca de congelação dos óvulos para futura gestação, por forma a não comprometer a “idade dourada de produtividade”- os anos férteis são os de promoção da carreira, em algumas multinacionais.

E uma sociedade com taxa de natalidade muito baixa só pode ser suicida, não é? Como é que o Estado enfrentará gastos e pensões sem contribuintes? Ou sem consumidores? Porque um decréscimo populacional também se reflecte negativamente na economia!

E é inspirada pelo legado da Maria Velho da Costa que ainda reivindico:

É impreterível que se inclua nos programas políticos a garantia, para as mães trabalhadoras, de infantários gratuitos ou subvencionados pelo Estado!

É importante que se contrarie a resistência de contratar mulheres, promovendo as licenças de maternidade e de paternidade, adopção incluída, alargando-as e igualando-as, em tempo e em responsabilidade, repartida, e sem cortes salariais, criando leis, de conciliação familiar e laboral das pessoas trabalhadoras, homens e mulheres!

Fazem falta também políticas de segurança social que salvaguardem os cortes salariais das famílias nestas circunstâncias da actual pandemia, e que tornem os custos menores para as empresas!

É urgente que se criem mecanismos de combate, e sobretudo de prevenção, mais eficazes, de toda e qualquer violência sobre as mulheres, seja a violência doméstica, seja a prostituição, o tráfico sexual ou o assédio ou esclavagismo laboral!

Por fim, é de relembrar, que a luta pelos direitos e dignidade da mulher tem-se revestido, ao longo da História, como uma ideologia progressista onde sempre se integraram outras lutas (contra injustiças como o racismo, a xenofobia, a homofobia, direitos das crianças e até dos animais; no caso das Novas Cartas, também denunciaram as injustiças da guerra colonial e a realidade dos portugueses enquanto colonialistas em África…). Esta ideologia denomina-se feminismo e não tem nada de radicalismo. É só de igualitarismo que se trata.

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Sílvia Vasconcelos
vasconcelos.silvia@gmail.com

Médica Veterinária a concluir doutoramento em Ciências Veterinárias, componente biomédica sobre os benefícios dos animais para saúde mental dos seres humanos. Actualmente dirigente nacional e coordenadora regional do Movimento Democrático das Mulheres, foi também deputada pela CDU na Assembleia Legislativa da Madeira. Foi ainda actriz no Teatro Experimental do Funchal, integrando vários projectos artísticos de teatro e de televisão desde 1986.

1 Comment
  • Catarina Sousa Freitas
    Posted at 18:30h, 26 Maio Responder

    Obrigada a ti, Sílvia.

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