O SINDROMA DA MÁQUINA DE CALCULAR

O SINDROMA DA MÁQUINA DE CALCULAR

É sabido que a maior parte das decisões políticas quando estão em causa vários parceiros políticos é feita nos bastidores, fora dos olhares da população. O que é revelado publicamente são os pormenores daquilo que ficou por resolver pelas partes e, por essa via, se procura ganhar os favores da opinião pública, ou aquilo que tendo ficado acordado se aproveita a ocasião para somar pontos aos pontos que já foram conquistados, nesta ou naquela disputa política.

De certa maneira é o que está a acontecer com as querelas em torno do orçamento de Estado. Não é que o fantasma do PEC IV esteja a assombrar o resultado final da votação do documento. Não sendo a situação política similar à que se verificava então, as suas consequências não deixariam de desencadear uma crise em que todos sairiam a perder, menos um, a extrema-direita. Quem nesta altura é responsável pelas teclas da máquina de calcular deve ter presente que se carregar na tecla errada corre o risco de encravar o sistema durante alguns largos meses. E na situação em que nos encontramos, não serão os fundos prometidos por Bruxelas que irão resolver o impasse que eventualmente for criado. 

Está nas mãos do governo, do primeiro-ministro e do PS encontrar a solução que melhor sirva quem ficou sem  emprego, perdeu rendimento, viu os subsídios emagrecerem, aumentou a precariedade e as desigualdades voltaram a progredir novamente. E no entanto esta é uma oportunidade para tornar o país menos desigual, dispondo o governo dos mecanismos e dos argumentos para o efeito. Trata-se, portanto de uma questão de vontade política e não tanto de haver mais ou menos recursos financeiros para os aplicar onde eles podem fazer a diferença. 

Neste conflito, em que a direita e a extrema-direita estão confortavelmente instalados, a intervenção do Presidente da República, uma vez mais, serve para procurar ganhar os votos que  na campanha eleitoral lhe podiam fugir para os candidatos situados no campo da esquerda. Com a sua intervenção, o recandidato, mais do que contribuir para resolver uma situação delicada, não deixa de amealhar intenções de voto para que o resultado final contribua para aumentar a sua ingerência na governação do país. 

Importa, por isso,  que o primeiro-ministro considere o que politicamente está em causa, analise todas as consequências de um desentendimento com aqueles que podem contribuir para o país ter um orçamento que satisfaça as aspirações daqueles que mais estão a sofrer as consequências da situação sanitária, e os passos que deve dar para que em 10 de Outubro todos possamos ter uma noite descansada. 

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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