O rapto de Europa

O rapto de Europa

Nunca me surpreendeu que o livro de cabeceira de Lenine tenha sido O Príncipe. Do que a obra trata fundamentalmente é do poder e do seu exercício. Porque é quem detém o poder que está em melhores condições para ditar as regras com que se vão travar os próximos combates. O que está a acontecer na Europa é, salvo neste extremo ocidental, tudo quanto anda à volta de a direita estar a ganhar posições estratégicas e poder no xadrez político, é um combate ideológico pela sua hegemonia.  Porém, tão grave como isto é ver tanta desorientação à esquerda, que confunde avanços da direita com ganhos de posições das populações. Como se as populações, naquela ideia de multitude de Negri, se constituíssem como entes políticos organizados para a acção, como se os partidos políticos já não tivessem que ser chamados para estes combates, sobretudo os tradicionais, porque são esses que são repositórios de uma longa experiência política. Mas o que também está a faltar é trazer para a acção as lições dos fracassos e dos sucessos do passado, uma vez que não estamos perante nenhuma folha em branco. E não havendo presente e futuro sem passado, aqueles partidos são indispensáveis para a construção de soluções políticas que mobilizem os europeus para a erradicação deste interminável programa de austeridade, que está a contaminar sociedades tão desafogadas como a austríaca, por exemplo. Nuns casos será o retrocesso e noutros a estagnação da mobilidade social, o que explica estas derivas nacionalistas.

Basta andar pelas redes sociais para confirmar o que digo, e nem vale a pena citar nomes. Sem os comunistas europeus, se a situação europeia se agravar, e o ano de 2017 tem todas as condições para isso acontecer, toda a manobra política para conter os populismos se tornará tão árdua que a probabilidade de êxito será escassa. Mas ao populismo de direita não se responde com populismo de esquerda, porque isso a acontecer então o sinal que está a ser dado é que esgotou os seus argumentos políticos. Por isso, e ao contrário do que foi afirmado no XX Congresso do PCP, a crise política europeia não está a criar condições para a sua superação pela esquerda, uma vez que a debilidade das suas forças  é tal que não está a chegar sequer para conter os avanços da direita dentro das respectivas fronteiras. Além disso, a construção de uma democracia avançada num só país, livre de Bruxelas e de Berlim, pode parecer atraente aos seus visionários mas historicamente sabe-se como acabaria a bravata soberanista. Por muito planeada e programada que fosse, no dia em que se afirmasse que se iria pagar a dívida em escudos, nem a pão e água ficaríamos porque a água era logo cortada  e o pão iria rapidamente desaparecer das padarias. Para o mal, não vivemos tempos de solidariedades políticas, mas o cada um por si também já não é suficiente para levar de vencida todos os trabalhos que cada povo tem pela frente.

É conhecida a história do rapto de Europa, como sendo um caso de infidelidade de Zeus, que a levou para Creta e de quem terá tido três filhos, segundo a mitologia grega. Se estes casos já se passavam no Olimpo era de esperar que o histórico fascínio por ela não cessasse. Depois do caso mitológico são conhecidas várias tentativas no mesmo sentido, a última das quais está a ser levada a cabo vai para uma década.  Desta vez o destino não é Creta mas o altar dos nacionalismos. Porém,  não é deixando-a capturar e raptar, não é assistindo ao seu sacrifício, que fica resolvido o problema do rapto e que a direita deixa de continuar a raptar. Os problemas não se resolvem voltando-lhes as costas, fazendo por esquecer que eles existem. Neste caso é contrariando o rapto, enfrentando os raptores, onde quer que eles estejam, e desejando continuar com ela, a Europa, que se criam oportunidades e condições para consolidar os progressos adquiridos, e avançar. Durante a guerra colonial a palavra de ordem era não desertar, não abandonar a frente de combate, não atravessar a fronteira em direcção a Paris ou Bruxelas. E isso foi uma contribuição inestimável para derrotar o fascismo e terminar com a guerra colonial. Quando a luz está fraca não cabe à esquerda apagá-la, teria dito Voltaire no seu tempo.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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