O PANO DE PALCO

O PANO DE PALCO

Reduzir a actividade política a um trimestre, na altura da discussão do orçamento do Estado, é ao que está reduzida a intervenção partidária, dentro e fora da Assembleia da República. A sonolência provocada pelos largos meses de confinamento e de resolução de um problema de saúde pública apoderou-se do debate político, deixando ao PS e ao governo todo o espaço para tomar todas as decisões que no seu entender julgam ser as que mais convêm aos seus interesses partidários, dos portugueses e da senhora Von der Leyen. Entre os muitos efeitos colaterais provocados pela pandemia, a paralisia quase completa da AR e do governo, exceptuando aqueles gabinetes que mais directamente lidam com o problema, é quase completa.

Nos últimos meses, o país entrou praticamente em gestão corrente. E mesmo com os indicadores relativos à situação sanitária provocada pelo vírus estarem a melhorar consistentemente – a mortalidade tende consistentemente para zero -, a cortina de preguiça que caiu sobre o palco político é particularmente perigoso. Não tanto porque a democracia esteja em jogo, mas porque é patente um certo clima de desleixo no escrutínio à actuação do governo. Este afã de alguns governantes estarem a mostrar que estão em cima de todos os acontecimentos que lhes digam respeito, imediatamente ampliado pelo Presidente da República, ou vice-versa, e a cobertura que lhe dá toda a comunicação social, tem criado na sociedade a percepção de que existe um e só um problema no país: a pandemia. E no entanto ele é uma floresta de problemas. 

E se alguém se atreve a desviar-se desta agenda, é olhado com desconfiança, quase o mandam calar, porque há um carril que leva e traz comboios, mas por onde começaram também a rolar outros veículos,  dentro dos quais viajam personalidades, das mais variadas procedências e com os mais diferentes interesses. Quase intocáveis, porque estavam ao serviço de causas maior, dizem eles. E assim se passaram dois anos sem que a oposição de esquerda tivesse conseguido furar o silêncio que a comunicação social fez cair sobre os assuntos que vão transitando de ano para ano sem serem resolvidos.  Onde param a política de rendimentos,  a reforma fiscal,  a laboral,  a política de ensino,  a política de saúde,  a política agrícola,  a investigação científica e a cultura? Congeladas. Porque, dizem, só há dinheiro para uma prioridade. O que sobra são trocos e a bazuca. E porque, dizem, com perna curta o salto não pode ser muito longo. 

Querem-nos habituar a que as manhãs passem a ser de nevoeiro para melhor sermos guiados nos labirintos que vão surgindo a cada passo. E de sonâmbulos, para não gritarmos que queremos de volta o nosso trabalho, dos nossos hábitos e das nossas maldades.  E obedientes que fomos até quase à continência. Portanto, vamos lá retomar a ida ao cinema, ao teatro, ao café, ao restaurante, ao passeio, á viagem a Badajoz, ou a Ayamonte, ou a Vigo, ou nem que seja a Verin. Sem condições. O resto fica por nossa conta, por exemplo, a retoma da luta por uma vida melhor.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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