O meridiano de Tordesilhas

O meridiano de Tordesilhas

Numa recente intervenção no 11º Congresso da Federação Nacional dos Médicos tive a oportunidade de mostrar, a partir dos dados das estatísticas da saúde publicadas pelo INE, como evoluiu, no período 2005-2014, a produção hospitalar no sector privado e no sector público. Esta comparação é particularmente relevante para poder ser tomada como referência para as medidas que estão anunciadas e a ser ensaiadas pelo actual titular da pasta, considerando que o serviço público de saúde está numa encruzilhada quanto ao caminho que há-de tomar, mau grado os encómios que lhe são dirigidos. Mas também porque a valência hospitalar, pela sua natureza e características – complexidade organizacional, gestão em ambiente de incerteza, sofisticação tecnológica, diferenciação profissional e casuística de risco – é aquela que está mais presente na representação social da saúde e da doença e a que ainda está mais associada aos valores do SNS.

Numa análise sumária, mas suficiente para se avaliar o que está em causa, em dez anos a estrutura da produção hospitalar total teve a seguinte evolução no sector privado: mais 12 pontos percentuais de consultas hospitalares, mais 10 pontos percentuais de internamentos, estabilização das cirurgias e mais 7 pontos percentuais de urgências. O sector privado é dominante na medicina dentária e na hemodiálise, já realiza tantas consultas em ginecologia/obstetrícia, oftalmologia e ortopedia como o sector público, e em outras três especialidades – medicina física e reabilitação, otorrinolaringologia e dermatologia já tem mais de 40% da quota de produção. E nas técnicas de diagnóstico, o sector privado já detém 28% da imagiologia hospitalar e 47% das endoscopias, as quais aumentaram 16 pontos percentuais naquele período. Neste complexo de valores há um indicador demonstrativo da selectividade deste sector: enquanto até aos 65 anos o ratio de internamentos é de 3 no sector público para 1 no sector privado, a partir dos 75 anos é de 7 para 1. No plano do financiamento, quando em todo o sector público houve um aumento de cerca de 481 milhões de euros, em todo o sector privado essa variação foi mais de mil milhões de euros.

O recuo da hospitalização pública está em risco de recuar ainda mais, considerando a ambição do actual presidente da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada – “O futuro da saúde em Portugal passará inevitavelmente por hospitais privados e hospitais privados de qualidade“ (Óscar Gaspar, Lusa, 16/10/2016), de que  o exemplo mais recente é a abertura da clínica Cuf do grupo Mello Saúde, em Almada, a partir de 2 de Dezembro, com a oferta de 30 especialidades servidas por mais de 100 médicos.  Mas não só. A estratégia ensaiada pela tutela em nada combate aquele objectivo, pelo contrário vem facilitar o traçado de um novo meridiano de Tordesilhas: centros de saúde para o sector público, hospitais para o sector privado, por ora. E isto será tanto assim quanto se concretizarem as duas medidas mais inadmissíveis  para os hospitais públicos. Uma, a liberdade de escolha, a qual não é mais do que um eufemismo e o encobrimento do défice de cobertura e acesso em vastas áreas do país, quando, nos últimos dez anos, começaram a ser encerrados muitos serviços de proximidade. Dois, a penalização financeira dos hospitais por não atenderem bem. Quanto a esta punição há a dizer que tratar uma instituição pública como se tratasse de uma qualquer empresa de construção civil que não terminou a construção da piscina no prazo estipulado no contrato é revelador do espírito com que se está dirigir o sector. Retirar financiamento, mesmo a quem está a ter práticas deficientes, nunca será a medida mais ajustada para corrigir desvios. E no sector público essa nunca poderá ser a decisão. No ano II da actual maioria parlamentar deixar que isto se venha a passar na hospitalização pública é estar-se de costas voltadas para o que se passa no nº 9 da João Crisóstomo.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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