O governo sem estado de graça e que faz oposição a si mesmo

O governo sem estado de graça e que faz oposição a si mesmo

Este é o terceiro mandato consecutivo do PS, ou seja, desde 2015, quando teve de se apoiar no BE e no PCP-PEV para poder chegar ao poder porque as eleições foram ganhas com maioria relativa pelas direitas coligadas de então. Pedro Nuno Santos (PNS), então Secretário dos Assuntos Parlamentares, foi talvez o principal artífice do bom funcionamento da improvável aliança entre as esquerdas portuguesas, as quais viviam de costas voltadas desde a transição democrática.

Em 2019, os eleitores reforçaram a maioria do PS, mas mesmo assim quiseram negociação com a oposição, sobretudo com as esquerdas, pois a maioria manteve-se relativa. Todavia, apesar das declarações de intenções de Costa/AC (sobretudo para aprovação dos orçamentos), a legislatura 2019-2022 ficou marcada pela predominância dos entendimentos PS-PSD: cerca de 60% da legislação aprovada no Parlamento, segundo um estudo vindo a lume no Expresso no final de 2021. De facto, AC privilegiou os entendimentos com o PSD face às esquerdas radicais, salvo em matéria orçamental, e, amiúde, não foram nem questões menores, nem representaram um benefício para o país (uma regionalização em conluio: eleições das CCDR; redução do escrutínio do executivo pelo legislativo: compressão da frequência dos debates com o premier e dos debates sobre a Europa; aumento do número de assinaturas para as petições serem discutidas em plenário: desincentivos à participação cidadã). Só não se entende é que, tendo Costa tanta vontade de negociar a localização do novo aeroporto com o PSD, não o tenha feito quando tinha no centro-direita o líder mais centrista, e com mais vontade de negociar com o PS, que os sociais-democratas alguma vez tiveram. Um insucesso de Costa, e uma clara oportunidade perdida, obviamente, dado que estamos há cerca de 50 anos a discutir a localização do novo aeroporto. Nessa altura, já PNS era ministro das infraestruturas e, por isso, partilha desse insucesso. Em qualquer caso, enquanto AC tinha «dois amores» (a esquerda radical para o orçamento, o PSD para quase tudo o resto), revelando assim que a opção «Geringonça» tinha sido sobretudo tática, PNS deixou claro em várias ocasiões que a sua política de alianças daria preferência às esquerdas, de facto.

Em 2022, o PS ganhou finalmente com maioria absoluta, mais por demérito alheio do que por grande entusiasmo com as políticas socialistas.  Por um lado, as esquerdas radicais caíram na armadilha de AC e comportaram-se nas votações do orçamento para 2022 como se tivessem de o aprovar e não apenas de se abster para ele passar, subindo muito a parada; foram fortemente penalizados nas legislativas que se seguiram ao chumbo do orçamento. Por outro lado, as direitas revelaram-se cada vez mais fragmentadas e com lutas intestinas, além do mais com um PSD que ensaiou uma estratégia centrista, 2019-2022, mas que, depois, estava disponível para liderar todas as direitas para poder chegar ao governo. O medo do Chega, de um lado, e a falta de perspetivas para as classes médias depauperadas desde a Troika, a que o PSD não respondia, de outro lado, criaram o caldo ideal para Costa ganhar com uma vitória que ele próprio não esperava…

Um governo em terceiro mandato raramente tem direito a estado de graça, apesar de prima facie se apresentar ex-novo… Ainda para mais numa situação de perda acentuada de poder de compra dos assalariados, nomeadamente das profissões científicas e técnicas, bem como dos técnicos intermédios, desde 2009, e sem grandes perspetivas de recuperação… apesar dos desejos declarados de AC para o sector privado (20% de aumento do salário médio em quatro anos), que não tem tido qualquer equivalência no sector público… Um SNS que manifestamente não dá para as encomendas, uma função pública desmotivada, uma economia com crescimento anémico e demasiado centrada no turismo (ou seja, de trabalho intensivo, precário e mal pago)… e que deixou arrastar a decisão sobre o novo aeroporto duas legislaturas, apesar da sua importância para o turismo, em cima das décadas anteriores… Claro que o episódio protagonizado agora por PNS é algo surreal, mostra uma impulsividade quase adolescente do ministro das infraestruturas, e desautorizava o premier na sua estratégia de alianças… tinha de ser (e foi) punida: claro que é a Costa que compete definir se consensualiza ou não com o PSD a estratégia aeroportuária, e nem se percebe que PNS tenha avançado com tanto espalhafato sem o respaldo de uma decisão no Conselho de  Ministros… Seja como for, esta farsa é prejudicial para a credibilidade de PNS, de AC e do governo, tanto mais que se trata de um governo sem estado de graça…. Veremos se AC consegue consensualizar alguma coisa, em matéria de aeroportos, com o PSD…. Ou se terá mesmo de avançar sozinho…. Em qualquer caso, é difícil não ver também neste episódio uma luta entre dois partidos socialistas que se digladiam no governo…

Publicado originalmente no jornal Público, 2 de Julho de 2022.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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