O Espectro do Bloco Central e a «Geringonça»

O Espectro do Bloco Central e a «Geringonça»

  1. Introdução

A imprensa tem dado conta de uma controvérsia pública em torno de um eventual regresso do «bloco central» (isto é, de uma aliança entre o PS e o PSD, seja para governar, seja sobretudo em termos de orientação e implementação de políticas públicas fundamentais), alicerçada em inúmeras votações convergentes na Assembleia da República (AR), na sessão legislativa que ora finda, contrariada depois pelas expressões de vontade dos líderes do PS e do PSD. Ou seja, António Costa tanto promove, ou pelo menos aceita, convergências com o PSD (numa espécie de «regionalização mínima», na reforma regimento da AR, na eleição de Francisco Assis para a presidência do Conselho Económico e Social, CES, no pacote de medidas para aliviar os efeitos socioeconómicos da pandemia COVID19, no primeiro orçamento suplementar de 2020, etc.), como afasta liminarmente a ideia de um bloco central e diz mesmo querer reeditar a «Geringonça». Isto é, Costa diz querer reeditar a aliança parlamentar para governar entre o PS e cada um dos partidos da esquerda radical BE, PCP e PEV, a que se juntaria agora também o PAN, para o que resta da presente legislatura (XIV), desafiando-os publicamente para uma tal aliança. No presente texto, passamos em revista tal controvérsia, e analisamos criticamente o seu significado e consequências.

  1. As eleições de 2019 e a recusa da reedição da «Geringonça»

Em artigo publicado na Seara Nova, nº 1749, dezembro de 2019, intitulado da «maioria de esquerdas ao governo ‘pisca-pisca’», bem como numa série de textos sobre a «Geringonça», aqui no JL (antes e depois das legislativas de 2019), refleti já sobre os dados fundamentais das eleições de 2019 e as opções políticas de socialistas, bloquistas, comunistas e verdes, quanto a uma eventual reedição da «Geringonça» para a XIV legislatura. Retomo brevemente algumas dessas ideias. Primeiro, o PS reforçou bastante as suas votação e presença parlamentar, face à legislatura anterior, tendo passado a primeiro partido e ficando a poucos lugares da maioria absoluta (passou a necessitar de apenas mais uma lista de esquerda, BE ou PCP/PEV, para fazer maioria absoluta); mais: o PS ficou numa situação em que só pode ser derrubado se os partidos da esquerda e da direita se aliarem para o derrubar. Tal como já tinha acontecido nas autárquicas de 2017, nas legislativas de 2019 o PCP e o seu eterno aliado, PEV, tornaram a perder votos e lugares, e, por isso, recusaram qualquer acordo escrito para a reedição da «Geringonça». O BE, que se manteve relativamente estável em votos e lugares, declarou-se disponível para um acordo escrito, mas (naturalmente!) pôs condições. Apesar de dizer inicialmente que queria reeditar a «Geringonça», o PS nunca fez qualquer contraproposta ao BE e, assim, fez colapsar a hipótese de reedição de um acordo escrito à esquerda para XIV legislatura. Na altura, previmos, por isso, uma espécie de «governo pisca-pisca», ou seja, uma solução em que o PS ora se apoia à esquerda, ora se apoia à direita, para governar, sobretudo se Rio fosse reconfirmado como líder do PSD (como veio a acontecer, em janeiro de 2020).

  1. O espectro do bloco central na XIV legislatura

O terreno fértil para uma aproximação entre o PS e o PSD começou,

portanto, a ser preparado pela liderança de Rui Rio à frente do PSD, antes da pandemia. Por um lado, Rio ensaiou uma abordagem centrista em matéria de políticas públicas, o que faz todo o sentido considerando os vários estudos de opinião sobre as preferências do eleitorado, nomeadamente do eleitorado de centro-direita. Por outro lado, desde logo para destruir a aliança das esquerdas, Rui Rio encetou um estilo de oposição bastante construtivo e disponível para entendimentos com o PS (no Público de 6-7-2020, um deputado do PSD, Pedro Rodrigues, declarou até que o seu partido tinha feito «cerimónia nas críticas ao governo»). Claro que tal estratégia, sobretudo em matéria de orientações quanto às políticas públicas, tem vantagens, sobretudo por ser mais congruente com as preferências do eleitorado. Todavia, a estratégia centrista de Rio também tem vários inconvenientes, além de que, segundo as sucessivas sondagens, não se tem revelado muito pagadora em termos de intenções de voto. Numa democracia, os dois grandes partidos devem protagonizar alternativas em termos de orientação quanto às políticas e em termos de alianças governativas (o PSD liderando um eventual «bloco de direita», o PS liderando um eventual «bloco de esquerda»). Quando assim não acontece, não se cumpre um desiderato importante da qualidade da democracia: existir uma oferta partidária efetivamente diferenciada que permita escolhas significativas ao eleitorado. Mais: tal é o terreno fértil para a ascensão dos populismos («eles são todos iguais»). Claro que em determinadas situações, como uma crise grave (uma recessão muito forte, uma pandemia, leis que estruturam a arquitetura do estado, leis que exigem maiorias de dois terços, etc.), tais convergências ao centro podem eventualmente fazer algum sentido, mas em geral e por principio não fazem bem à qualidade da democracia.

Por um lado, se é verdade que a Pandemia veio tornar o terreno ainda mais favorável (do que já era) a um «bloco central», também é certo que algumas votações do PS maioritariamente alinhadas com a direita (PSD) e excluindo as esquerdas radicais vão muito além disso. Por exemplo, o Público de 12 de abril de 2020 dava conta que do extenso pacote de medidas para mitigar os efeitos sociais e económicos da pandemia COVID19, a aprovação de 60% das mesmas resultou de convergência PS-PSD e apenas 20% da convergência entre o PS e os partidos à sua esquerda. E foi de certo modo assim também no primeiro orçamento suplementar de 2020, o qual passou com abstenção do PSD e do BE, mas já o voto contra do PCP, entre outros partidos (Público, 4-7-2020). Por outro lado, em muitas matérias (mesmo aquelas que exigem maiorias de dois terços, como o regimento da AR) é duvidosa a necessidade de um tal entendimento entre o PS e o PSD. É o caso, por exemplo, da eleição indireta das CCDR pelos autarcas em fim de mandato (outubro de 2020, quando haverá novas eleições em outubro de 2021), mas mantendo a tutela do governo sobre as CCDR (com capacidade de demitir os seus responsáveis), encetando assim o «funeral da regionalização» (Manuel Carvalho, Público, 8 de julho de 2020; ver também «Bloco central em sintonia quase plena nas votações finais», Expresso, 25 de Julho de 2020). Ou ainda a passagem dos atuais debates quinzenais com primeiro-ministro, para a regular prestação de contas do governo no parlamento, a uma cadência de dois em dois meses (ver André Freire et al, «Em defesa dos debates parlamentares com o primeiro ministro», Público, 1-8-2020). São tudo entendimentos de tipo «bloco central» que vão muito além de qualquer putativa urgência das reformas ou da aritmética parlamentar, e sobretudo dão o sinal prático oposto a quem, no PS, diz que quer entender-se com os partidos à sua esquerda, mas passa a vida «na cama» com o PSD… E poderíamos multiplicar os exemplos. Aliás, sublinhe-se que o nosso entendimento de o que é o bloco central inclui não apenas coligações formais (como tivemos em 1983-85), mas também um dos partidos a funcionar como uma espécie de «partido de suporte» do outro, no Parlamento, para aprovar legislação fundamental (nomeadamente os orçamentos), e inclui até a estratégia para as eleições presidenciais. Também aqui as declarações de Costa e de vários altos dirigentes socialistas, em apoio implícito ou explicito à reeleição de Marcelo, apontam claramente para uma estratégia de tipo «bloco central».

  1. As declarações em prol de uma reedição da Geringonça»

Apesar de tudo isso, em declarações à Visão (30-7-2020), tal como em várias intervenções no Parlamento, Costa tem reiterado a sua intenção de reeditar a «Gerigonça», não apenas já para o orçamento de 2021, mas também com o horizonte da legislatura. Creio que temos de levar a sério as declarações dos atores políticos sobre as suas intenções, mas também devemos confrontá-las com os seus atos. Neste domínio, para o PS, o que salta à vista é a discrepância entre palavras e atos. Alguns dizem que Costa está apenas a sinalizar ao seu eleitorado, maioritariamente favorável à reedição da «Gerigonça», que está realmente empenhado nisso, para depois responsabilizar a esquerda radical se tal não acontecer. Neste contexto, penso que cabe a BE, PCP-PEV e PAN apresentarem publicamente e assertivamente as suas condições para um acordo (orçamental e/ou de legislatura) e, assim, obviarem responsavelmente a uma eventual armadilha de Costa.

Texto originalmente publicado no Jornal de Letras, coluna mensal de André Freire, «heterodoxias políticas», na quinzena de 12 a 26 de Agosto de 2020.

Fonte da foto: jornal Público.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

No Comments

Post A Comment

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.