O discurso de 17 de Outubro

O discurso de 17 de Outubro

As instituições políticas, por muito que custe aos mais dogmáticos, devem grande parte da sua capacidade de sobrevivência à plasticidade com que acomodam o agenciamento humano, e como respondem diferenciadamente a cenários políticos novos. Assim sucede com o sistema de governo português, vulgarmente designado por semi-presidencialista, que desde que tomou a sua forma actual (na revisão constitucional de 1982) se tem moldado a diversas formas de encarar o exercício dos poderes presidenciais, como todos se devem recordar ao comparar os mandatos de Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva. O monge também faz o hábito. Mesmo algumas supostas regras (como por exemplo: quanto maior for a solidez do apoio parlamentar de um governo – no limite, se dispuser de maioria absoluta mono-partidária – menor será o campo de manobra do PR) são apenas tendências que muitas vezes chocam com realidades: Mário Soares não se atemorizou com as maiorias absolutas de Cavaco. Por isso, é sempre difícil falar das regras constitucionais como se de um monolito se tratasse – quando as instituições são plásticas. Mas há uma possibilidade de escapar a tão dramática conclusão: é usar um método comparativo.

O discurso de 17 de Outubro do Presidente Marcelo (ele próprio um distinto professor de Direito Constitucional, com vasta obra sobre a matéria…quando dizia respeito a outros!) é um momento fulcral na definição do entendimento que faz dos seus poderes constitucionais. E não se pode dizer que Marcelo seja modesto

Tenho para mim que o momento de maior afirmação dos poderes políticos (e não meramente institucionais) do PR até hoje tinha sido – por paradoxal que possa parecer – o discurso de Jorge Sampaio na tomada de posse de Pedro Santana Lopes. Ao dar posse a alguém em que manifestamente não tinha confiança pessoal, Sampaio ousou definir balizas políticas como nenhum outro PR depois da revisão constitucional de 1982, esclarecendo que a base de sustentação parlamentar era condição necessária mas não suficiente para a sobrevivência do governo (Aliás Sampaio, que cultivou um estilo low profile, teria intervenções marcantes no tocante aos poderes políticos do PR, como no caso do envolvimento militar português no ataque ao Iraque ou na retirada de confiança política a diversos actores civis e militares…). Marcelo não lhe ficou atrás, e em pouco mais de uma frase, disse o que tinha a dizer:
– que o PR queria um “novo ciclo” (ou seja, novas políticas)
– que o governo deveria ponderar quais essas políticas, reservando para si uma palavra sobre as ditas
– que devia escolher novos rostos para as corporizar (pedindo em publico a cabeça da ministra – o que outros tinham feito no recato das reuniões semanais)
– que deveria rever o orçamento para 2018 à luz das necessidades da nova “prioridade das prioridades”
– e que o governo deveria refrescar a sua legitimidade parlamentar – seja apresentando uma moção de confiança, seja respondendo a uma moção de censura (como a que o CDS já havia apresentado). Não retirou a sua confiança ao governo, mas eximiu-se a qualquer palavra que pudesse significar comprometimento.
Só uma resposta positiva ao conjunto destas questões daria satisfação ao PR que recordou, sem ambiguidade, que usaria “todos os seus poderes” (ou seja, ameaçou a sobrevivência do governo) se não recebesse garantias de que os erros que levaram ao desastre dos fogos florestais de 2017 iriam ser corrigidos – e de forma que achasse adequada.

Já toda a gente ouviu dizer que foi o maior puxão de orelhas que António Costa levou. E que a culpa, em ultima instância, foi sua pela desastrada gestão que fez depois do incêndio de Pedrógão Grande. E ainda que, de aqui para a frente, as coisas não vão ser como dantes… Mas este ultimo ponto merece que sobre ele nos detenhamos, tendo como dado adquirido que o PR tem um entendimento abrangente dos seus poderes – o que o aplauso generalizado de que beneficiou nestes dias apenas serve para reforçar. Para bem entendermos o que se passa, é bom dar um passo atrás

Depois de eleito, Marcelo deu – contrariando grande parte da sua base eleitoral e os directórios partidários da direita – um prazo ao governo para ver o que valia: até às eleições autárquicas, marcando apenas umas linhas vermelhas de caracter genérico (manter os compromissos europeus e outras semelhantes). Ora o governo não só manteve os compromissos europeus que tanto afligiam Marcelo, como obteve excelentes resultados na frente interna, desde o controlo das contas publicas ao crescimento do PIB e à descida sustentada do desemprego. Mais do que isso: obteve um retumbante triunfo nas eleições autárquicas – o que dificulta a ideia de que uma nova consulta eleitoral pudesse trazer melhores resultados para a sua família política. Mas no seio dessa sua família política, algo mudou – e Marcelo quer ir a jogo

Se Passos Coelho tivesse aguentado o barco e se perfilasse como o candidato do PSD às próximas legislativas, as chances de provocar um rombo na “geringonça” eram diminutas, tal é o fosso que existe entre ele e António Costa – e o que passa por cima do fosso é acrimónia. Nesse cenário, o interesse de Marcelo seria o de facilitar a maioria absoluta ao PS que o dispensasse de buscar à esquerda o apoio necessário, uma vez que da direita nada viria. Mas afastado Passos Coelho, há uma esperança na direita: que o novo líder do PSD possa reposicionar o partido numa posição mais centrista que o aproxime de um novo “arco de governação”, eventualmente viabilizando um executivo minoritário de Costa, ou permitindo a este (que tem repetidamente afirmado não o desejar, mas nunca se sabe o que nos traz o dia de amanhã…) equilibrar-se entre direita e esquerda. Para essa possibilidade nascer, é preciso que o PS não obtenha a maioria absoluta. O que sucedeu entre o incêndio de Pedrógão e o de 15 de Outubro não foi só Tancos, os relatórios e a azelhice de Costa: foi a anunciada saída de cena de Passos Coelho, que faz nascer água na boca a todos os que se situam no centro direita, e que justifica um jogo de cintura em que alguns são exímios e outros não. É nesse jogo que Marcelo dispõe de trunfos valiosos, que terá de ir jogando à medida que a situação se for clarificando – mas que terá sempre a sua impressão digital (como a inoportuna reunião com Pedro Santana Lopes bem deixa antever…).

É neste quadro que eu creio que se irá processar a intervenção de Marcelo: sustentar o governo enquanto o centro direita se recompõe (e isso vai levar o seu tempo, até porque aos problemas internos do PSD se junta a crescente afirmação do CDS es efeitos do fim do voto útil que decorrem da solução governativa adoptada, e em que o excelente resultado de Assunção Cristas em Lisboa não deixará de pesar), mas distanciando-se dele o suficiente para que a alternativa a Costa vinda da direita encontre espaço para respirar.É um equilíbrio difícil – mas Marcelo já demonstrou a sua habilidade há muito tempo (e ele sabe que a re-eleição tem de ser conquistada para além das fronteiras da sua família política). Razões de sobra para que, à esquerda, não desprezemos – como muitos fazem – a questão presidencial.

Rui Graça Feijó
ruifeijo@gmail.com

Desde que acompanhei os pais a um comício da CDE nas eleições de 1969, com 15 anos de idade, tenho deambulado pelas esquerdas (Pró-associação dos liceus do Porto, LCI, UEDS, MASP I e II, Clube da Esquerda Liberal, PS - de que fui vereador na CMPorto com o Fernando Gomes - campanhas presidenciais de Jorge Sampaio, Manuel Alegre - infelizmente só a segunda, que estava em Timor em 2005 como adjunto do Xanana - e António Sampaio da Nóvoa, e ainda MIC/Porto, CDA, Movimento 3D, Tempo de Avançar, Forum Manifesto. Um verdadeiro peregrino! Agora regresso aos tempos de vida no campo (em criança e em adulto) e olho pasmado para a Vaca Voadora. Ah! E sou historiados/investigador em ciências sociais e políticas, com uma recente agregação em "Democracia no Século XXI"" (FEUC/CES)

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