O direito ao luto e o fundamentalismo (a)político

O direito ao luto e o fundamentalismo (a)político

Pode parecer, mas este nem é um artigo (só) sobre a causa animal (que defendo pessoal e profissionalmente!), é também sobre o direito laboral e vem a propósito de uma proposta apresentada recentemente por uma deputada não inscrita na AR para o alargamento do regime de faltas por motivo de falecimento de cônjuge, parente directo e … (pormenor acrescido) pela garantia do mesmo direito ao luto justificado por falecimento de animal de companhia.
Sim, esta é uma questão sobretudo laboral mas que ressaltou na opinião pública como mais um “capricho dos fundamentalistas da causa animal”- expressão contumaz de alguns que se dizem políticos, de direita ou de esquerda, e que serviu de argumentação à linha política do PSD, sobretudo, enquanto fui deputada na ALRAM (Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira), para reprovarem diplomas que respeitavam à saúde, direito e dignidade dos animais (não humanos) e que, por inerência, salvaguardavam a saúde pública e coexistência ecossistémica, numa definição global de “uma saúde, um mundo”.

Mas vamos por partes quanto à interpretação de alguns conceitos:

O que é afinal o fundamentalismo? Bem… sem preceitos filosóficos (que não domino), resume-se a uma definição estrita assente em credos que se consideram os unicamente válidos, sobrepondo-se a todos os demais.  Ou seja, ou uma espécie de egocentrismo com exaltação ideológica e de uma falta de empatia pungente… Ainda a este propósito, o do morredio argumento do “fundamentalismo”, não deixa de ser “curioso” que os mesmos deputados na ALRAM que pugnaram pela dignidade da condição dos animais não humanos fossem os mesmos que mais propostas apresentassem na generalidade temática, incluindo iniciativas em defesa das crianças, das mulheres, dos idosos, dos trabalhadores, da saúde, da habitação, da natureza e demais assuntos do interesse público e político.

Sim, político, porque tudo isto tem que ver com a política. Se se recorrer ao poema de Brecht e do seu “analfabeto político” é fácil deduzir que política é tudo o que nos respeita, individual ou colectivamente, não excluindo qualquer SER, até porque, comprovadamente, vivemos todos numa “polis ecossistémica” que só poderá subsistir se soubermos, de forma inteligente e empática, compatibilizar o interesse e necessidades comuns, ou seja o bem estar e coexistência de todos os seres vivos (humanos e não humanos). Portanto, os que atacam politicamente a deputada Cristina Rodrigues (sim, é deputada e não ex-deputada – leia-se a Constituição e o regimento da AR a propósito para melhor esclarecimento) não serão políticos mas, com certeza apolíticos, sem qualquer regência comum ou social, mas com outros fins, porventura eleitoralistas à medida acéfala do populismo mais trivial.

E quanto ao conceito de luto? É um conceito do mais senso comum: o pesar (que não se restringe à espécie humana) pela perda de quem nos faz falta de algum modo. Podem ser parentes de primeiro grau, mas também amigos ou outros afectos, de onde não escapam os nossos convivas, os animais não humanos.

E agora discorro com a ciência, a respeito – a que se debruçou durante décadas (já rondam mais de quatro décadas…) sobre estudos em torno das relações ser humano-animal e a sua vinculação simbiótica, recíproca e mutualista: a dor emocional inerente à condição senciente de animais humanos e não humanos – e entra aqui a componente psicométrica psicológica (também reconhecida cientificamente desde há décadas) – que é tão equiparável entre a partida de membros de família ou demais membros afectivos, os denominados amigos ou outros, onde se incluem os sencientes animais não humanos.

Estudei durante uns anos a transformação da estrutura social que engloba os animais humanos e não humanos (insisto nesta definição antropológica e científica para melhor elucidação de alguns cépticos …) colocando, sobretudo no contexto sócio-familiar actual, os animais num patamar que supera o utilitarismo e a própria função de companhia, tendo já vários estudos discorrido sobre os efeitos benéficos (e recíprocos) dos animais para os seres humanos; sobre a vinculação, possível e profunda, entre animais e seres humanos; sobre o reconhecimento de muitos tutores de uma nova condição para os seus animais: a que os considera membros constituintes das suas famílias de pleno direito, alterando assim a própria estrutura familiar actual (um estudo recente da GfK Track.2Pets, concluiu que “mais de metade das famílias com cães consideravam o animal “um membro da família” mas a respeiyo há mais trabalhos, académicos, ainda mais recentes, no nosso país, inclusive, que puderam concluir o mesmo).

Então daqui não resulta resulta, inevitavelmente, a legitimidade de prestação de cuidados aos “novos membros da família” que não estando plasmada em lei no nosso país leva já, porém, a que muitas pessoas já metam férias, usem artigos de faltas ou mesmo que metam baixas para prestar auxílio aos seus animais em condições clínicas urgentes ou de grande gravidade, tal como fazem para assistir aos demais membros de família que lhes são dependentes, queridos ou próximos?

Quanto ao luto, e já tendo discorrido sobre o seu significado, não é difícil compreender que a perda de um ente que se tem como integrante da nossa família gera igualmente um profundo sentimento de consternação e desolação que demora a passar, seja ele nosso congénere ou não. O mais comum, no entanto, é que “o luto por um animal seja ainda vivido de forma silenciosa” e seja ainda tão “trivializado” e incompreendido socialmente, o que certamente estará na origem de tantas reações que raiam desde o jocoso ao ofensivo quer à proposta quer à deputada quer aos que abraçam esta causa (que é também política!), a “causa animal”.

Argumenta-se, apesar de tudo mais seriamente, com a priorização de outras medidas para ridicularizar esta proposta como se ao se defender esta matéria isso implicasse que se descurasse as demais causas e preocupações sociais. Como se a preocupação com os animais invalidasse a preocupação com pessoas. Aqui, ressalto outras conclusões científicas: quem tem compaixão por animais tem mais propensão à empatia, inclusive com os seus congéneres humanos; e há sérios estudos que corroboram que muitos dos psico e sociopatas em crianças já destratavam e torturavam animais.

Mas ressalta-se mais, agora ao nível político, reforçando uma ideia descrita acima: há partidos políticos e deputados que se debateram  com acérrimo empenho na defesa do bem-estar e direitos dos animais e que igualmente  pugnaram pelos direitos e proteção das crianças; que lutaram para melhores condições no trabalho e pelos direitos de quem trabalha; que reivindicaram mais apoios para a cultura; que se empenharam em acrescentar suplementos de reforma para os idosos e outras medidas de proteção para os mesmos; que debateram e propuseram medidas para uma melhor saúde e educação para todos; que se debateram contra a injustiça da desigualdade de género, etc., etc., etc. E, sim tudo isto em simultâneo com medidas e propostas que dignificassem os animais não humanos!
Portanto, esbata-se a argumentação a raiar a necedade, por vezes, a truculência e mesmo a desumanidade de quem escarnece deste tipo de propostas alegando “fundamentalismo” ou despropósito face a outras “prioridades”, incorrendo mesmo em insultos e hostilidades no enquadramento do debate, ou em “gracejos” sem assento no conhecimento (por exemplo se se soubesse a definição legal de animal de companhia/estimação não se questionaria grotescamente se o mesmo luto seria aplicável a um formigueiro rentabilizando assim os dias de luto por cada animal (sim, estes absurdos e despropósitos, entre outros, pululam na túrpida argumentação das redes sociais, e não só!).

Segue-se então, e finalmente, e retomando o início desta exposição, o fulcro do diploma que aqui se comenta: é sobretudo uma matéria do direito laboral (atente-se ao título) e o seu propósito é tão só permitir aos trabalhadores que possam viver e ultrapassar o seu luto pela perda de familiares, tendo em conta o impacto emocional que a morte tem no ser humano, incapacitando-o muitas vezes, durante um período variável de tempo, para a suas funções laborais, requerendo assim um período de adaptação à perda do seu familiar. Familiar, esse, que também pode ser um animal de estimação- repete-se, conforme documentam já inúmeros estudos cientificos! Assim, propõe-se que a lei possa permitir um dia para o luto de um animal de companhia (e até 7 dias por ano para prestação de cuidados urgentes e justificados ao mesmo) e que se aumentem os dias de nojo para os demais familiares,  para melhor corresponder ao tempo necessário para a gradual recuperação do embate da morte. Adaptando uma frase do diploma “pedir a alguém que regresse ao trabalho” logo após o falecimento de um ente estimado e da nossa convivência “é uma exigência de uma violência extrema”.

Mude-se então a lei. Melhore-se a lei. E , claro, debatam-se exaustivamente e criem-se mecanismos de fiscalização para o cumprimento da lei, sem que se dê, obviamente, azo a quaisquer abusos ou desregramentos.

 

Adenda:

Sofri a perda de um animal (uma gata, a da foto) após 18 anos de convivência diária, desde quase a minha adolescência, a estudar, até à minha fase adulta, já a trabalhar. No dia em que ela morreu a consternação foi tal que mesmo tendo ido trabalhar, não conseguia conter o choro e claro que não correspondi à exigência do trabalho naquele dia. Valeu-me uma chefe e colegas compreensivas que além do consolo possível, me libertaram do trabalho naquele dia e eu pude sair cedo e deambular pelas ruas de Lisboa até conseguir, gradualmente, controlar a emotividade.
Muitos anos antes, quando a gata foi esterilizada e mesmo sendo profissional da área da saúde animal, a inquietação, enquanto tutora era tal que pedi a uma chefe para tirar horas para a ir assistir a casa por causa de complicações pós-cirúrgicas e mais uma vez tive a compreensão de um superior hierárquico. Se não a tivesse porventura teria de meter férias porque não há qualquer legislação que permita que se assista na doença e se chore condignamente os nossos animais – “animais como nós”, humanos.

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Sílvia Vasconcelos
vasconcelos.silvia@gmail.com

Médica Veterinária, doutorada em Ciências Veterinárias, componente biomédica sobre os benefícios dos animais para saúde mental dos seres humanos. Actualmente dirigente nacional e coordenadora regional do Movimento Democrático das Mulheres, foi também deputada pela CDU na Assembleia Legislativa da Madeira. Foi ainda actriz no Teatro Experimental do Funchal, integrando vários projectos artísticos de teatro e de televisão desde 1986.

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