O desentendimento entre as esquerdas portuguesas no período pós-Guerra Fria

O desentendimento entre as esquerdas portuguesas no período pós-Guerra Fria

Em principio, é hoje aprovado na generalidade o segundo orçamento da solução política que sustenta o XXI governo constitucional: um governo minoritário do PS mas apoiado pela esquerda radical (designação puramente técnica e nada pejorativa) portuguesa, ou seja, pelo BE, PCP e PEV. Um governo minoritário, mas que num fundo é uma espécie de «coligação dissimulada» porque só o PS tem presença ministerial, mas a solução política tem um forte respaldo parlamentar estável, apoiada que está em quatro acordos parlamentares. Para olhar o futuro, é sempre necessário escrutinar-se bem o passado, nomeadamente para se assimilarem e evitarem os erros do passado. É este o objeto deste texto: tentar explicar «o desentendimento entre as esquerdas portuguesas no período pós-Guerra Fria.»

No período após o final da Guerra fria, a falta de entendimento governativo entre as esquerdas portuguesas é mais difícil de explicar (do que no período da Guerra Fria), sobretudo entre o PS (Partido Socialista) e o BE (Bloco de Esquerda), já que a relativa ortodoxia em que o PCP (Partido Comunista Português) permaneceu, apesar de várias mudanças significativas nas orientações políticas dos comunistas portugueses após 1989, o tornava, pelo menos teoricamente, relativamente menos propenso a alianças com o PS do que no caso do BE. Este último era filho precisamente da nova era pós-guerra fria, com a sua crítica do totalitarismo soviético (e chinês) e o aggiornamento ideológico e organizacional associados. As principais explicações que avançamos para tal falta de entendimentos entre as esquerdas após o fim da Guerra Fria são seis.

Primeiro, as distâncias em matéria de orientações face às políticas públicas, com um PS bastante centrista na dimensão esquerda-direita (ou seja, na prioridade relativa dada à igualização das oportunidades e condições de vida, e ao papel atribuído ao Estado para se atingir tal desiderato) e uma esquerda radical bastante mais alinhada à esquerda; com um PS mais centrista do que o BE, mas não necessariamente do que o PCP, nas políticas associados ao chamado liberalismo cultural; e, finalmente, com um PS bastante mais europeísta do que, quer o BE, quer o PCP. Esta explicação deve, porém, ser relativizada por dois motivos essenciais: por um lado, porque distâncias semelhantes nalguns outros países não impediram alianças entre os socialistas/sociais-democratas e as esquerdas radicais; por outro, porque mesmo as distâncias significativas na arena do liberalismo cultural (os chamados «temas fraturantes») não impediram várias alianças do PS com o BE (e por vezes também com o PCP-PEV/CDU).

Segunda, a fragmentação do sindicalismo português em duas grandes centrais, uma mais próxima da esquerda radical (a CGTP-IN) e outra mais próxima do centro político (PS e PSD, a UGT), e que é uma espécie de «bloco central» (PS e PSD) no terreno sindical, em permanência: tal determinou, ao contrário do que se passou em muitos outros países, que nunca vieram do terreno sindical português grandes estímulos à formação de «governos de esquerdas».

Terceiro, a reduzida experiência de «governos de esquerdas» no terreno autárquico (quase só reduzida a Lisboa, 1989-2001, e 2007-presente data, e ao Funchal, 2013-presente data) também não funcionou como um estímulo a idênticas experiências ao nível nacional, ao contrário do que aconteceu em muitos outros países onde houve uma difusão das experiências dos «governos de esquerdas» do poder local (ou regional) para o poder nacional.

Quarto, o receio (infundado ou não) das esquerdas radicais portuguesas em diluírem a sua identidade numa eventual aliança com os socialistas e, com tal inflexão, contribuírem para uma pronunciada erosão da sua base eleitoral.

Quinto, o fraco papel e a fraca vontade efetiva das lideranças do PS, do BE e do PCP-PEV (CDU) em promoverem aproximações com as necessárias cedências mútuas. Neste período, ao contrário dos tempos da Guerra Fria, a falta de vontade relativa para aproximações entre as esquerdas terá sido maior da parte da esquerda radical do que dos socialistas.

Sexto, a natureza e características do sistema político-eleitoral e constitucional, com fracos incentivos à cooperação entre os partidos, mas também favorecendo a formação de governos minoritários.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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