
17 Ago O campeão do despudor e da desvalorização
O Ministro das Finanças (MF), Fernando Medina, contratou (desde 29 de julho de 2022, apesar de o contrato ainda não ter saído no Diário da República) o jornalista Sérgio Figueiredo, ex-diretor da TVI, para ser seu consultor de políticas públicas no Ministério das Finanças, nomeadamente fazendo a auscultação dos «stakeholders» na economia portuguesa (confederações sindicais e patronais, etc.) com vista à produção e à implementação das políticas públicas (Público, 9-8-2022 e 10-8-2022). Esta contratação tem muitos problemas, mas não se vislumbram propriamente virtualidades, a não ser a de olear a vertente da comunicação política do MF com os parceiros sociais e o público (apesar de licenciado em economia, a atividade de Sérgio Figueiredo sempre foi sobretudo no domínio do jornalismo, nomeadamente na direção de órgãos de comunicação social). Como os problemas são tantos e a virtualidade me parece tão pouco relevante, ainda por cima para o «ordenado» que será pago ao consultor, centro-me em três problemas graves. (Ou seja, será paga «uma avença» equiparada ao salário do MF, mas que, do pouco que se conhece, não será em regime de exclusividade, logo pode redundar em ordenado de ministro, mas com funções em regime de part-time)
O primeiro problema desta contratação é o de se configurarem indícios fortes de troca de favores, neste caso em particular, mas também no da contratação de serviços a uma empresa de Sérgio Figueiredo (na ordem dos 30 mil euros) pela Câmara de Lisboa, em 2020, quando Medina era ainda presidente da Câmara Municipal de Lisboa (Radio Renascença, 11-8-2022, citando a Sábado). Em 2015, depois de um quid pro quo entre o atual Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, e o então diretor da TVI, Sérgio Figueiredo (SF), o primeiro foi dispensado pelo segundo, e a convite de SF Fernando Medina passou a ser comentador regular da TVI, funções que manteve até 2022, quando ingressou no Governo da República depois de perder as eleições municipais. O indício de eventual troca de favores é tão evidente que não é preciso explicar o dito. Mas é preciso sublinhar o seguinte: mesmo que tudo isto seja legal, são procedimentos que os representantes políticos deviam evitar todo o custo pois não contribuem para a confiança dos cidadãos nos processos políticas, levantam problemas sérios de transparência no processo de tomada de decisão e, consequentemente, contribuem para a descredibilização da classe política e dos partidos. Quanto mais não fosse por uma questão de pudor, deviam ser evitados: à mulher de César não basta ser séria, precisa também de parecer séria.
O segundo problema desta contratação é que ela representa uma enorme desvalorização dos quadros do Ministério das Finanças (e de outros eventuais ministérios que poderiam ser mobilizados), servidores públicos altamente qualificados e com um perfil muito provavelmente mais adequado às funções que Sérgio Figueiredo irá desempenhar do que um jornalista (mas com salários muito mais baixos). No fundo, esta contratação significa o seguinte: os quadros do Ministério das Finanças, nomeadamente do gabinete do Ministro, são considerados por Fernando Medina como tendo qualificações e capacitação insuficiente para desempenhar assessoria na produção e implementação das políticas públicas, daí que o responsável político tenha tido de recorrer ao sector privado, pagando uma avença «a peso de ouro», com funções eventualmente desempenhadas em part-time (verificando-se a falada ausência de exclusividade). Isto é tanto mais grave quanto se trata de um governo socialista e que, portanto, devia valorizar os quadros da administração pública, nomeadamente os das profissões científicas e técnicas, às quais paga tão mal. Mais, revelando uma certa sintonia com o que foi dito atrás, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia e a economista Susana Peralta, em declarações ao Público (11-8-2022) sobre este caso, declararam que esta contratação pode «violar o principio da eficiência» a que estão obrigadas as entidades públicas na sua gestão financeira, fruto de uma duplicação das funções que o consultor irá desempenhar com a de organismos pré-existentes na administração pública, tais como o Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e de Prospetiva da Administração Pública — o PlanAP –, referido por Bacelar Gouveia, ou o Gabinete de Estudos e Relações Internacionais (GPEARI), referido por Susana Peralta. Acresce que, dadas as carências de pessoal no SNS, na Educação, na Segurança Social, etc., estas contratações no setor privado assumem até laivos de imoralidade.
O terceiro e último problema, mas não o menos importante, é que os salários dos servidores públicos (tirando os salários na base da escala social, nomeadamente o salário mínimo) não eram aumentados desde 2009, e, em 2021 e 2022, os aumentos de 0,3% e 0,9%, destinavam-se apenas a cobrir a inflação desses anos, não a repor o poder de compra perdido desde 2009, sendo que a inflação em 2022 está a galopar desde o inicio do ano (está agora perto de 8%) e o senhor Medina recusou-se terminantemente a ter a ter isso em conta na revisão do orçamento para 2022. O que houve, entre 2015 e 2019, foi apenas reposição dos cortes salariais (desde 2009) e o descongelamento de carreiras (ver Expresso, 12-2-2020: «Função pública está a perder até €647/mês com congelamento dos salários»). Os quadros da administração pública estão pois altamente desmotivados e mal pagos, e estas contratações externas e «a preços pornográficos» no setor privado só podem gerar mais insatisfação, descontentamento e desmotivação. Aliás, é por os salários dos médicos serem tão baixos que eles têm migrado em massa para o sector privado, fragilizando ainda mais o SNS. Mais, nomeadamente desde a guerra na Ucrânia e a galopante inflação subsequente, que os problemas salariais não se restringem ao sector público e, por isso, em vez destas contratações milionárias, duplicando funções, o governo devia era devolver rendimento às pessoas e às empresas baixando generalizadamente o IRS e, quiçá também, do IRC. É por tudo por isso que esta contratação do MF (tal como as que Medina fez à mesma pessoa na CMLx) me permitem classificá-lo como o campeão do despudor e da desvalorização. Mas sendo um protegido especial do premier, putativo delfim, em princípio no passa nada. Lamentavelmente!
Fonte: artigo de André Freire publicado originalmente na versão impressa do Público, 12-8-2022.
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