O bloco central sindical e o centrismo ideológico do PS

O bloco central sindical e o centrismo ideológico do PS

O PS sempre foi um partido de orientação centrista no seio dos socialistas europeus (ver Para lá da «Geringonça»: O Governo de Esquerdas em Portugal e na Europa, Contraponto, 2017). Segundo dados do European Election Study (EES), 2009, baseados nas perceções dos eleitores sobre a localização dos partidos no eixo esquerda-direita (1, esquerda, a 10, direita) para 27 sistemas políticos europeus, Portugal apresenta o sétimo regime com menor polarização ideológica entre o centro-esquerda (PS) e o centro-direita (PSD), isto é, o sétimo com o menor grau de clareza nas alternativas políticas apresentadas aos eleitores. E tal fraca diferenciação deve-se sobretudo ao posicionamento centrista do PS (tem um posicionamento médio de 5,12; o da família socialista europeia é de 4,27), pois o PSD não é propriamente um partido localizado ao centro (tem um posicionamento médio de 7,31; na sua família política europeia é de 7,59), está antes praticamente na média europeia dos partidos conservadores e liberais. Os dados procedentes do mais recente EES, 2014, reforçam aquela conclusão. Todavia, também mostram sinais de alguma mudança: verifica-se um certo aumento da polarização ideológica entre o PS (agora um pouco mais à esquerda, posição 4,8) e o PSD (posição 7,90), devido a um ligeiro movimento do primeiro para a esquerda e de um movimento bem maior do segundo para a direita, fazendo a posição de Portugal em 27 sistemas políticos, passar a ser a décima menos polarizada. Porém, para os 27 sistemas políticos, verificou-se que, apesar daquela evolução, o PS (4,8) continua abaixo da média (4,6) dos socialistas europeus, com apenas dois membros (na Dinamarca e na Bélgica/Flandres) situados à sua direita, estando todos os restantes situados à sua esquerda. Pelo contrário, apesar da viragem para a direita do PSD, 2011-2014, e de este partido estar em 2014 bastante mais acima da média da família conservadora (7,9 para 7,43), enquanto em 2009 estava abaixo desta média (7,31 para 7,59) tem ainda, em 2014, 9 partidos situados à sua direita. Ou seja, quer em 2009, quer em 2014, é mais o centrismo ideológico do PS (bem vincado) do que o centrismo ideológico do PSD (relativamente ausente) que poderão explicar a fraca clareza das alternativas em Portugal.

Mas porque é que a diferenciação ideológica é importante? Acima de tudo porque numa democracia a clareza das alternativas, sobretudo entre as forças que devem pilotar as alternativas de governo, é um esteio essencial da qualidade da democracia, pois só ela permite aos eleitores fazerem escolhas com significado e com efeitos diferenciados nas políticas públicas. Logo, a débil clareza das alternativas em Portugal enfraquece a qualidade da nossa democracia. Há várias razões para esta situação, mas há duas que avultam. Primeiro, a política de alianças: devido ao cisma nas esquerdas (PS versus PCP), geneticamente formado durante a transição para a democracia, quando governou sem maioria absoluta, o PS apoiou-se sempre formalmente ou informalmente na direita para exercer o poder (coligação com o CDS, bloco central, apoio do PSD aos orçamentos do PS, em vários anos). Tal só começou a mudar desde finais de 2015, com a novel maioria de esquerdas. Segundo, aquilo a que eu tenho chamado o «bloco central sindical»: para se combater a tentativa de controle dos sindicatos pelo PCP, na célebre questão da «unicidade sindical», em 1978-79 foi criada a UGT fruto de uma aliança entre o PS e o PSD. Efetivamente, a UGT é uma espécie de bloco central no terreno sindical e puxa o PS para o centro nos temas laborais. Neste texto, pretendo precisamente analisar como, apesar da inflexão do PS para a esquerda fruto do novel governo apoiado na maioria de esquerdas, o bloco central sindical continua a puxá-lo fortemente para o centro. Ilustrarei tal argumento com algumas discussões sobre a legislação laboral na presente legislatura.

Durante a intervenção da Troika, 2011-2014, seja devido ao programa de neoliberalização da dita, seja porque a direita procurou ir «além da Troika», foram significativamente revertidos os equilíbrios entre o capital e o trabalho (ver «The condition of Portuguese democracy during the Troika’s intervention, 2011-2015», Portuguese Journal of Social Science, Vol. 15, Nº 2, pp. 173-193). Nomeadamente, foram cortados salários e pensões, aumentaram-se de forma generalizada os impostos sobre o trabalho (os impostos sobre o capital, IRS, foram cortados, com o beneplácito do PS, aliás), aumentou-se a jornada de trabalho, reduziram-se os feriados, cortaram-se as indeminizações por despedimento, facilitando-os, e enfraqueceu-se a capacidade de negociação dos sindicatos (via contratos coletivos de trabalho). Tal contrastou com o reduzido esforço pedido ao capital, de que o corte no IRC é apenas um exemplo. No final, a quota percentual do trabalho, face ao capital, no rendimento nacional passou de 58,4%, em 2010, para 54,1%, em 2014, ou seja, a austeridade foi bastante assimétrica.

Por um lado, é certo que a nova maioria política de esquerdas conseguiu reverter muitas daquelas medidas: recuperação de salários e pensões, embora ainda sem aumentos salariais; recuperação de carreiras na função pública, embora ainda não integral; retorno faseado das 35 horas na função pública; retoma dos feriados extintos; algumas medidas de combate à precariedade; subida do salário mínimo; entre outras.

Todavia, como bem nota o economista político Ricardo Paes Mamede: «outra fonte de inquietude no seio da maioria de esquerda tem sido a falta de determinação do governo em repor algum equilíbrio nas relações laborais. (…) Neste domínio, o PS revela o essencial da sua natureza: a indisponibilidade para avançar em domínios em que entraria em rota de colisão com poderes instalados – neste caso, as confederações patronais e as instituições internacionais, para quem o reforço do poder negocial dos trabalhadores é tabu. («Era bom que trocássemos umas ideias sobre o próximo governo», Manifesto, Nº 1, 2ª Série, 2018, pp- 20-25).»  Outro economista político, Eugénio Rosa, ligado à CGTP, nota também que a recuperação dos salários e o combate à precaridade avançou muito pouco e Portugal mantem-se na cauda da Europa neste domínio, não sendo tal evolução explicável pelas tendências da produtividade, que tem aumentado mais em Portugal do que no resto da EU («a diminuição dos custos do trabalho, o aumento da produtividade em Portugal e na União Europeia, e o agravamento da desigualdade na distribuição da riqueza», Crítica Económica, Nº 4, https://criticaeconomica.net/2018/04/critica-15-abr-jun-2018/ ) Um dado especialmente preocupante é que a percentagem de trabalhadores ganhando o salário mínimo passou de 6%, em Abril de 2006, para 23,3%, em Outubro de 2016.

Para este cenário de tímidos avanços na recuperação do poder dos trabalhadores em matéria da divisão capital trabalho não é só o medo (do PS) em afrontar as confederações patronais e as organizações internacionais que está em causa, é também o papel do bloco central sindical. Recordem-se dois exemplos. Primeiro, em 2016, o PS pretendia que as subidas do salário mínimo fossem pagas pelos contribuintes, e não pelas empresas, reduzindo-lhes a Taxa Social Única (TSU), e ficando as reduções da TSU associadas ao volume de salários mínimos… tal medida tinha o beneplácito da UGT, além dos patrões, e a oposição da esquerda radical que apoia o governo… no final, a ideia não passou porque o PSD de Passos Coelho não quis replicar o bloco central sindical no Parlamento, e para ter o apoio das esquerdas tiveram  de ser encontradas outras medidas não lesivas da segurança social. Segundo exemplo, de novo com o beneplácito da UGT e dos patrões, o mais recente pacote de legislação laboral aprovado na concertação social, com o objetivo propalado de combater a precariedade aumenta-a exponencialmente através do aumento do período experimental para 180 dias (ver a entrevista à especialista em direito do trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, Jornal de Negócios, 5-7-18), e avança muito pouco noutros domínios como a contratação coletiva.

Resumindo: para a maioria de esquerdas poder seriamente apostar na sua reedição após 2019, e num futuro mais sólido, será preciso mais ousadia e determinação (do PS) na reposição de algum equilíbrio nas relações laborais, a verter num eventual novo acordo político…, e, para tal, uma transformação significativa do perfil e funções da UGT é também necessária, nomeadamente quanto ao papel dos socialistas no seu seio. E, de caminho, valorizar mais o papel da corrente socialista na CGTP.

 

 

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

2 Comments
  • Bettencourt Picanço
    Posted at 20:54h, 31 Agosto

    Uma boa análise!

    • André Freire
      Posted at 15:38h, 11 Setembro

      Muito obrigado, caríssimo Bettencourt Picanço! vindo de quem vem, um dos mais combativos sindicalistas dos TSD…, é um elogio especialmente importante! um abraço