Moinhos de vento.

“Não há inocentes. Apenas diferentes graus de responsabilidade”, raciocina Lisbeth Salander, protagonista de A menina que brincava com fogo, de Stieg Larsson. Na saga, o protagonista Mikael Blomkvist é um jornalista dedicado a investigar uma série de escândalos de corrupção envolvendo autoridades respeitáveis de seu país: a Suécia. Sim, parece que  escândalos desse gênero acontecem mesmo onde o Estado Social de Direito atingiu seu esplendor. Conforme vai acompanhando as investigações de Blomkvist o leitor é levado a concluir que a diferença entre inocentes e culpados, pode ser colocada em uma escala, na qual os extremos importam menos do as gradações.

A conjuntura venezuelana me desperta o mesmo sentimento. Uma breve anamnese da história recente do país ajuda a pôr em perspectiva qualquer narrativa maniqueísta acerca da relação entre oposição e governo.

No que concerne à configuração atual do legislativo venezuelano, eleito em dezembro de 2015, foi a primeira vez, desde a chegada ao Poder de Hugo Chávez, em 1998, que a oposição conseguiu a preeminência em alguma instituição nacional venezuelana por eleições regulares. Não obstante, no decorrer da Revolução Bolivariana, foram pelo menos três tentativas de obtê-la por vias extraordinárias. A primeira delas através de um golpe de Estado fracassado, em 2002, que durou apenas 48 horas; e as outras foram através da instauração de referendos populares a fim de revogar o mandato do então presidente; em ambas as tentativas, em 2004 e 2007, a população frustrou as expectativas dos anti-chavistas, garantindo a manutenção de Chávez no poder. Embora auditados por diferentes observadores internacionais, todos os resultados eleitorais foram seguidos de

I.       enérgicas contestações por parte dos líderes oposicionistas;

II.               categóricas denúncias por parte dos meios de comunicação internacional, respaldadas por diferentes especialistas e personalidades públicas;

III.             violentas manifestações nas ruas de Caracas e outras grandes cidades do país.

A violência é um atributo recorrente nas manifestações políticas do país, cujas origens remetem ao Caracazo [1].

No tocante à oposição, é fundamental ressaltar a alternância entre estratégias de contestação eleitoral e “extra-eleitoral”, sendo estas últimas marcadas pela ruptura institucional (DELGADO & SILVA, 2016). Esta é a moldura que enquadra tanto os protestos de fevereiro de 2014 – quando setores da oposição, no bojo de manifestações para melhora das condições sociais, passaram a exigir a saída imediata de Maduro, em um episódio que resultou centenas de feridos e 18 mortos (SILVA, 2014, 36) – como os protestos ocorridos, em Caracas no último dia 05 de abril,  contra a suspensão do legislativo pelo STJ.

Quase nada do que vemos conjuntura atual é novidade. Exceção feita à queda de popularidade do chavismo que, por sua vez, deve ser inserida em um contexto global de refluxo das esquerdas no continente. No mais, são os mesmos atores, os mesmos especialistas, as mesmas denúncias.

Como era de se esperar, no governo de Nicolás Maduro acentuaram-se os embates entre governo e oposição, sendo as questões referentes à habilitação do Executivo para exercer funções legislativas mais uma das polêmicas que devem ser emolduradas pelo recurso à história. Na Venezuela, a divisão de poderes que caracteriza o Estado de Direito nunca deixou de ser uma ficção. Utilizada 14 vezes durante o governo Chávez, a delegação de poderes legislativos ao Executivo através das chamadas Leis Habilitantes é uma recorrência que transcende os limites da Revolução Bolivariana, posto que também prevista e utilizada sob a Constituição de 1961, que a precede [2].

Em março de 2015, os Estados Unidos tipificaram o governo chavista como uma ameaça nacional,  implementando sanções contra sete funcionários venezuelanos pelo seus supostos envolvimento no conflito entre forças governamentais e antichavistas, nas manifestações de 2014. Barack Obama julgou o envolvimento dos funcionários como um ato de transgressão aos direitos humanos. Em contrapartida, Maduro solicitou à Assembleia a concessão de poderes legislativos ao Executivo para, segundo o presidente, proteger a soberania venezuelana e afastar a interferência norte-americana do país. Essa foi a segunda vez que a Lei Habilitante foi acionada em seu mandato, a primeira foi em 2013 [3].

Ainda nesse contexto, em dezembro de 2015, uma semana após as eleições legislativas que garantiram a maioria oposicionista na Assembleia, o governo, ainda em situação de maioria no Legislativo[4], aprovou a criação de um Parlamento Comunal Nacional. A implementação dessa nova instituição consagra uma ambição de ruptura com os preceitos do liberalismo político, que remonta ao estabelecimento dos Conselhos Comunais e das Comunas como aposta alternativa ao federalismo liberal [5] (SILVA, 2015 ).

A proposta foi encabeçada pelo então presidente da Assembleia, Diosdado Cabello, sob o argumento de que o poder das comunas precisa ser assegurado, uma vez que a soberania popular seria “o poder mais importante que há”. Nicolás Maduro, por sua vez, expressou que daria “todo poder ao Parlamento Paralelo” [6]. A oposição condenou a atitude governista arguindo que a decisão constituía uma grave ameaça aos princípios liberais. A denúncia, todavia, assume um tom esquizofrênico que acompanha a cobertura da conjuntura política do país. A ruptura com os marcos da democracia liberal não é uma intenção velada do governo, mas o próprio leit motiv da Revolução Bolivariana, que, a partir de 2010, iniciou um processo de transição rumo à configuração do Estado Comunal (SILVA, 2015). Faz pouco sentido denunciar que o rei está nu quando todos estão diante de suas partes pudendas.

A questão, negligenciada tanto pelos atores venezuelanos como pelos analistas e pela opinião pública internacional deveria ser se o modelo alternativo é adequado, levando em conta que o liberalismo, na Venezuela como em muitos outros países da região manteve-se como um ideal, sem jamais adentrar no plano dos fatos. Não há espaço, contudo, para esse tipo de discussão em um mundo no qual o liberalismo é reificado mesmo onde nunca deitou raízes.

Em janeiro deste ano, a Assembleia Nacional, invocando o artigo nº 233 [7] da Constituição venezuelana, declarou o abandono de cargo de Nicolás Maduro.  Os argumentos que embasaram tal interpretação, por parte dos oposicionistas, foram no sentido julgar que o desempenho do governo estava aquém dos preceitos constitucionais devido, dentre outros fatores, à suposta violação dos direitos humanos e deterioração das condições sociais e econômicas do país.

A despeito desse histórico, a suspensão temporária da Assembleia Nacional venezuelana pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) parece ter surpreendido muita gente.  Por um lado, a oposição legislativa, junto a entidades e autoridades atreladas a alguns países da região, como Peru, Brasil e Argentina, defendem que o governo chavista está efetuando um auto-golpe. Por outro lado, os chavistas arguem que estão em direção à defesa da institucionalidade e que, na verdade, suas medidas foram tomadas para entravar o golpe legislativo, que se encontra em “situação de desacato” com o poder judiciário, como manifestou a chancelaria venezuelana, no dia 31 de março [8].

A decisão do STJ foi tomada na última quarta-feira (29/04), sob o argumento de que a Casa Legislativa havia descumprido diversas sentenças determinadas pela Corte, dentre elas o empossamento de três deputados do estado do Amazonas, acusados de fraude eleitoral. O Supremo, então, assumiu temporariamente as funções da Assembleia e retirou a imunidade dos deputados, até que estes acatassem a deliberação e desincorporassem os parlamentares indiciados.

Logo após a decisão, o Ministério das Relações Exteriores do Peru, retirou seu embaixador do país de forma definitiva [9], alegando o rompimento com os princípios do Estado de direito. Concomitante a isto, o presidente da Assembleia Nacional, Júlio Borges, o líder opositor Henrique Capriles e Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), iniciaram uma movimentação internacional para denunciar o atentado às instituições liberais no país [10]. A imagem que me vem a mente, uma vez que não é possível atentar ou romper com algo que jamais existiu, é a de Dom Quixote, em seu duelo contra gigantes inexistentes. São apenas moinhos de vento.

Notas

[1] Como ficou conhecida a série de eventos iniciados em 27 de fevereiro de 1989, quando em rechaço a um aumento nas tarifas do transporte coletivo, milhares de venezuelanos foram às ruas em violentas manifestações que incluíram saques incêndios e depredações e deixaram um saldo de mais de 300 mortos (SILVA, 2014, 36). De acordo com pesquisas realizadas pela socióloga Margarita Lopez Maya, desde o Caracazo, observa-se na Venezuela um incremento progressivo no número de protestos no país (LANDER & LÓPEZ MAYA, 2008, 151-152). Não obstante, é a partir de 2002, quando radicaliza-se o confronto entre chavismo e oposição que se inicia uma escalada de violência.

[2] Na Carta Bolivariana de 1999, as leis habilitantes eram reguladas pelo artigo 203º “São leis habilitantes as sancionadas pela Assembleia por três quintas partes de seus integrantes, a fim de estabelecer as diretrizes, propósitos e marco das matérias que se delegam ao Presidente ou Presidenta da República com status e valor de lei. As leis habilitantes devem fixar prazo para seu exercício”. Na Carta de 1961, tal prerrogativa era prevista pelo artigo 190° inciso 8° que estabelecia como atribuição do presidente da República: “ditar medidas extraordinárias em matéria econômica ou financeira quando assim o requeresse o interesse público e houvesse sido autorizado para isso por lei especial”.

[3] A ampliação dos poderes de Nicolás Maduro, na ocasião, foi concedida, segundo o governo, para combater a corrupção e a crise financeira, priorizando o controle dos custos, preços e lucros da iniciativa privada, zelando pela proteção salarial.

Fonte: https://www.cartacapital.com.br/internacional/venezuela-aprova-lei-que-da-poderes-para-que-maduro-governe-sob-a-emissao-de-decretos-3279.html. Acesso em: 05/04/2017.

[4] A atual Assembleia foi empossada em 05/01/2016.

[5] Os anos de 1980 e 1990 demarcam um profundo desgaste nas estruturas de organização social venezuelana. A descrença nas instâncias tradicionais de representação que daí se desdobrou gerou um período de intensa movimentação no sentido de reivindicar maior participação popular na política. Nesta conjuntura, foi promulgada a Lei Orgânica do regime municipal, de 1989, que almejava fortalecer um conjunto de organizações como juntas paroquiais e associações de moradores que, por meio de assembleias deliberativas, discutiam e decidiam questões atinentes ao interesse geral. Entretanto, tais entidades eram majoritariamente representadas por setores da classe média e alta. Deste modo, a Revolução Bolivariana é deflagrada como um movimento de inclusão das parcelas até então excluídas. Desde então, foram criados diferentes mecanismos para ampliar a atuação direta dos setores populares nos processos decisórios, sobretudo de caráter local, dentre eles destacam-se os Conselhos Comunais e as Comunas. (SILVA, 2014).

[6]http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,maduro-diz-que-dara-todo-o-poder-ao-legislativo-paralelo-criado-na-venezuela,1812210. Acesso em: 05/04/2017.

[7] Artículo 233: Serán faltas absolutas del Presidente o Presidenta de la República: su muerte, su renuncia, o su destitución decretada por sentencia del Tribunal Supremo de Justicia; su incapacidad física o mental permanente certificada por una junta médica designada por el Tribunal Supremo de Justicia y con aprobación de la Asamblea Nacional; el abandono del cargo, declarado como tal por la Asamblea Nacional, así como la revocación popular de su mandato […]. Fonte: http://venezuela.justia.com/federales/constitucion-de-la-republica-bolivariana-de-venezuela/titulo-v/capitulo-ii/#articulo-233. Acesso em: 05/06/2017

[8]http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-03/venezuela-diz-que-acusacao-de-golpe-de-estado-no-pais-e-falsa. Acesso em: 03/04/2017.

[9] http://internacional.elpais.com/internacional/2017/03/30/america/1490904700_948851.html. Acesso em 03/04/2017

[10] http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/30/internacional/1490848414_081004.html. Acesso em: 03/04/2017.

Mayra Goulart
mayragoulart@gmail.com

Professora de Teoria Política e Política Internacional e Vice-Coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Coordenadora do Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa (OPLOP/UFF) e Pesquisadora Visitante do CIES (ISCTE/IUL).

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