
20 Jul Marcelo: o Presidente “Independente de Si Próprio”?
Eduardo Ferro Rodrigues, outrora um porta-estandarte de uma sensibilidade de esquerda dentro do PS que tem vindo progressivamente a abandonar para hoje se situar noutras águas, afirmou não faz muito tempo que Marcelo Rebelo de Sousa seria um “presidente independente de si próprio” e, nessa medida, era o seu candidato preferido nas eleições que se avizinham. Significaria isto que o PR não agiria de acordo com o que são as suas convicções pessoais ( a de um democrata com fundas raízes católicas situado na direita do espectro político), mas antes determinaria a sua posição institucional em função da análise que fizesse do estado da situação em relação a cada diploma concreto: se considerasse que o tema havia sido objecto de um debate nacional suficientemente amplo, e a despeito de poder ter pessoalmente uma posição contrária, o PR tenderia a promulgar a lei; pelo contrário, se estimasse que esse pressuposto não estava preenchido, poderia – também aqui a despeito de qual pudesse ser a sua opção individual – recusar a sua assinatura . Isso terá sido dito pelo PR no decurso da sua campanha eleitoral, há cinco anos. Reapareceu a mesma ideia pela voz do presidente da Assembleia da República. Terá razão?
Dou de barato que Marcelo Rebelo de Sousa não pautou, ao longo do seu primeiro mandato, a sua acção por considerações de ordem partidária. A liderança do seu partido – aliada à do CDS – pediu insistentemente uma atitude diferente em relação ao governo de António Costa: queriam que o legado de Cavaco Silva inspirasse o novo presidente, e que pusesse em cima da mesa a dissolução da AR, ou, no mínimo, que antagonizasse o PM. Marcelo, como é sabido, tomou uma atitude diferente: aceitou a legitimidade da solução corporizada pela geringonça. Podemos talvez dizer que Marcelo fez regressar a Belém um tipo de relação entre o PR e o seu partido de origem semelhante à que Mário Soares e Jorge Sampaio haviam definido. Recordemos que Soares decidiu não nomear o secretário-geral do seu partido (Vítor Constâncio) como PM, dissolvendo o parlamento e facilitando a primeira maioria absoluta de Cavaco. E que Sampaio se recusou a convocar um referendo pedido pelo PS (à IVG), depois de ter nomeado Pedro Santana Lopes como PM ao arrepio da posição veemente do seu partido. Assim, Marcelo pode ser considerado como um presidente independente do seu partido na senda dos seus antecessores – e em contraste com o segundo mandato de Cavaco.
Mas: será um “presidente independente de si próprio”? Um PR que apenas averigua o estado de maturação de um determinado acto político no seio da sociedade portuguesa, e é capaz de permitir a passagem de leis estruturantes que colidem com as suas opiniões pessoais, caso estejam ancoradas num amplo debate nacional? Tenho sérias dúvidas. Vejamos
Nas ultima semanas veio a lume, por “fugas de informação” oriundas de Belém, que Marcelo não aceitaria um desfecho para a crise da TAP que passasse pela nacionalização da companhia. Seria uma solução constitucional? Sem dúvida! A CRP prevê a existência de um sector publico, e aceita o princípio da nacionalização. Até Cavaco permitiu a nacionalização do BPN. A UE tem objecções de principio? Também não. A Itália nacionalizou não faz muito tempo a Alitalia – precisamente a sua companhia aérea de bandeira. Compete ao Governo da República definir as políticas publicas? É obvio! Mas é também ponto assente que o PR poderia ter uma palavra decisiva neste processo, pelo menos adiando a solução que poderia carecer de ser votada por maioria na AR para compelir o PR à sua promulgação. Politicamente, a tomada de posição do PR em encontros com o PM assumiu-se como um poderoso factor a ter em conta no desenho da solução. E isso é uma intervenção altamente política – diria mesmo, ideológica! -, mesmo que a queiramos disfarçar sob o manto diáfano da “razão institucional”.
Em várias ocasiões no passado recente Marcelo fez saber quais as linhas vermelhas que estaria disposto a aceitar – a despeito do maior ou menor grau de maturação no debate público. Recordo duas: a recusa em aceitar a eleição directa da liderança das Juntas Metropolitanas, ou a sua intervenção a propósito da discussão da Lei de Bases da Saúde, onde fez questão de assumir a defesa da possibilidade de se manter gestão privada o princípio da concorrência entre público e privado no Serviço Nacional de Saúde (não no Sistema Nacional de Saúde que o engloba e transcende)
Porém, o exemplo mais gritante do modo como Marcelo condiciona a produção legislativa e a formulação de políticas públicas prende-se com a Regionalização. A Regionalização corresponde a um imperativo constitucional. Aliás, os termos em que pode vir a ser desencadeada são fruto da sua intervenção, enquanto líder do PSD em 1997 , ao negociar com António Guterres a obrigatoriedade de um referendo que a consagre. O debate em torno deste tema tem 44 anos! Recentemente, o PS e PSD acordaram na constituição de uma Comissão de Peritos que analisou e debateu em profundidade o assunto. Há hoje um ampla convergência que vai de Rui Rio a Jerónimo de Sousa e engloba o BE e uma parte significativa do próprio PS e que é favorável ao avanço desta reforma verdadeiramente estrutural. Que falta? Pois bem: o argumento de António Costa para protelar esta reforma é que ela é contrária à “sensibilidade do PR”! A sensibilidade do PR vale então mais do que a ampla convergência alicerçada em debates sem conta? Sim, por uma razão simples: tal como está constitucionalmente consagrada, a Regionalização carece de um referendo. E a lei do referendo põe nas mãos do PR a decisão de avançar ou não com este instrumento, face a uma proposta que surja do governo ou da AR. Ou seja: o PR tem a faca e o queijo na mão! Não bastou a Marcelo ter imposto a necessidade de submeter um preceito constitucional ao crivo de um referendo (é caso único na nossa constituição!), agora tem o poder de não convocar tal referendo.
Serão estes casos de intervenção em momentos críticos da vida publica manifestações da “independência de si próprio” ? Ou, pelo contrário, evidenciam que Marcelo tem, enquanto PR, uma agenda política própria (o que é legitimo) e como tal deve ser confrontado com as suas escolhas – ele e quem estiver com ele nas eleições de Janeiro próximo? O combate exige clareza e seriedade de propósitos. Mas venha ele! As esquerdas não podem ficar reféns de águas turvas
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