28 Abr Marcelo e nós (I) : potestas e auctoritas
Muito antes de ser Presidente da Republica, como o próprio recordou na visita ao Colégio Moderno feita esta semana, Marcelo era (diz que há 50 anos!) analista político. E também foi largas décadas professor de Direito Constitucional. Já sabíamos: novato nestas coisas é que ele não é!
Como constitucionalista, Marcelo sabe algumas coisas sobre o os poderes do PR: a Constituição da República Portuguesa define uma série de poderes e competências do chefe de Estado – mas não resolve todos os problemas da sua interpretação, e a história dos sucessivos PRs que tivemos depois da revisão de 1982 mostra bem como o monge faz o hábito. Desde a “magistratura de influência” de Mário Soares à perfunctória “colaboração estratégica” com o governo apregoada por Cavaco Silva, várias nuances (e uma radical mudança) tem sido apanágio do modo de encarar a função próprio a cada presidente. Um dos problemas reside na fixação positiva dos poderes presidenciais, que vários tentaram já dissecar (vide Vital Moreira e Gomes Canotilho, ou Jorge Reis Novais), discutindo o que são poderes explícitos (de relativamente fácil análise) e os poderes implícitos, bem mais complicados. Vejamos um exemplo: a que poderes positivos corresponde o desempenho da função de Comandante Supremo das Forças Armadas? Jorge Sampaio deu dois contributos para a defesa de um entendimento muito activo: retirou a sua confiança política no CEMGFA Almirante Fuzeta da Ponte, levando o PM de enato a propor a sua exoneração para evitar um conflito; e opôs-se com sucesso ao envio de tropas portuguesas para o Iraque que Durão Barroso queria fazer participar no ataque. Mas outros terão tido visões mais contidas desse poder.
Num outro plano, como nos ensina o politólogo Giovanni Sartori, a par da constituição formal, existe uma outra, a que chamou material, e que engloba praticas estabelecidas e aceites, revelem elas novos poderes e competências não explicitados nos documentos legais, ou pelo contrário, deixem cair no esquecimento algumas das prerrogativas formas (que no entanto não deixam de ser legítimas), contribuindo assim para “a real configuração do sistema”. Trata-se de considerar que nenhum documento legal sobrevive no vácuo cultural – e que a cultura política é necessária para se definir o campo daquilo que os velhos latinos chamaram de “potestas” : o campo das competências próprias de um detentor de cargo público para determinar a execução de determinada medida..
De um modo geral, os PRs tem-se inclinado para um entendimento da função presidencial dentro do sistema semi-presidencial que caracteriza o nosso regime democrático como sendo um “poder moderador” (conceito oitocentista de Benjamin Constant, que inspirou a Carta Constitucional de 1826 – a lei fundamental de quase toda a monarquia até ao 5 de Outubro, e fonte da CRP de 1976; e que define os traços essenciais das monarquias democráticas modernas). Para isso, os candidatos a PR tem enfatizado que, apesar de poderem ter ligações históricas a partidos políticos, eles não procuram exercer o cargo em sintonia com o interesse partidário, mas colocar-se num nível que se eleva acima da luta que anima os parlamentos. Daí que insistam na sua “independência” desde que Mário Soares devolveu o cartão partidário na noite em que foi eleito “Presidente de todos os Portugueses”. E a verdade é que apesar da sua proximidade ao PS, tanto Soares como Sampaio tomaram duras decisões contra o interesse imediato dos seus partidos (desde a recusa a dar posse a um governo chefiado por Vitor Constância em 1987 à nomeação de Santana Lopes para PM em 2004 ou à oposição à proposta de novo referendo sobre o aborto logo após a tomada de posse de Socrates). Cavaco Silva divergiu desse padrão de comportamento – mas para azar dele o sonho de Sá Carneiro (“uma maioria, um governo, um presidente”, que não esqueçamos foi formulada no tempo em que o líder do PSD defendia uma revisão constitucional de sentido claramente presidencialista, na linha do seu apoio anterior à manobra spinolísta travada logo em Julho de 1974) transformou-se para si num pesadelo. Depois de ter cumprido um primeiro mandato na defensiva (apesar de se gabar de ter influenciado mais de um terço dos diplomas que promulgou…), entrou a matar com o discurso revanchista na noite da sua reeleição, e com um ataque feroz ao animal feroz no discurso de tomada de posse. Mas esqueceu-se que no sistema semi-presidencial que temos, o PM tinha uma legitimidade idêntica à sua, e não se deixou condicionar – antes condicionou, e muito, a margem de manobra de quem se viu compelido a ir a reboque. A triste figura de um PR desautorizado por todos a que assistimos por ocasião da proposta de alargamento da maioria de governo ao PS em troca da antecipação de eleições foi um momento triste de se ver…
O que o analista Marcelo não deixou de notar foi que esta inversão de sentido no entendimento da função presidencial levou a uma queda vertical na popularidade do PM. A sua colagem à locomotiva Passos Coelho, sem que este desse ouvidos ao “professor de economia”; as intervenções disparatadas sobre a incapacidade de viver com uma pensão de €10,000/mês e a decisão de optar pela pensão em vez do seu salário como PR; as promiscuas associação aos negócios do BPN e da Praia da Coelha – tudo isso levou a acelerar a queda de popularidade do PR que saiu do cargo com uma taxa de -13 pontos, o único PR a ter apreciação negativa nos barómetros, que geralmente colocam os presidentes na casa dos 50 ou mais pontos positivos. E sem popularidade, sem que a corrente eléctrica passe entre PR e cidadania, lá se vai um bem precioso: a “auctoritas” dos romanos – a sua legitimação socialmente reconhecida (independente da legitimidade formal eleitoral) e a sua capacidade de emitir um juízo moral ou político com eco junto dos cidadãos. Não se trata do poder de impôr uma solução, mas sim o de condicionar o ambiente em que ela é tomada.
Sendo conceitos distintos, “protestas” e “auctoritas” articulam-se de forma próxima, e podemos dizer que sem “auctoritas”, a “protestas” será sempre limitada.
Conhecendo como a palma das suas mãos a relação que acabo de referir, Marcelo soube, desde o primeiro minuto, que havia que retomar uma linha interpretava do múnus presidencial em linha com o fora apanágio de Soares e Sampaio. Para isso tinha de recuperar a “auctoritas” – pela via fácil de ser a voz que diz o que quase todos gostamos de ouvir (mais crescimento, mais redistribuição, mais isto e mais aquilo – sempre mais…) – para chegar ao que verdadeira este lhe interessa: ver a sua “protestas” crescer.
Nesse sentido, a fúria de intervenção que o anima leva-o a pronunciar-se sobre este mundo e o outro. Alguns argumentam que esta forma de actual pode ser cansativa – se não para o próprio, para os destinatários. Veremos – e não é problema nosso. Outros afirmam que Marcelo esta a ir para além das suas competências constitucionais. Tal tem sido dito por muito boa gente, de Vital Moreira a Eduardo Paz Ferreira, sugerindo que seria conveniente desenvolver um estado de alerta e denunciar todos os episódios em que Marcelo aventura o pé um pouco mais longe. Creio mesmo que Marcelo inaugurou já uma nova forma de entender a relação entre PR e PM que chamo de co-governo: vejam-se as suas declarações “preventivas” (i.e., antes de ter qualquer diploma para promulgar) sobre a inconveniência de mexer na orgânica das áreas metropolitanas (e o PS enfiou uma promessa eleitoral no saco) ou os comentários à necessidade de manter PPPs na saúde (e o Ministro da Saúde sangrou-se em declarações no sentido que nada seria decidido sem uma análise caso a caso…), para não voltar à baila a sua intervenção no caso da Cornucópia (caso que mostra que Marcelo está disposto a correr o risco a perder alguns pontos num jogo que durará vários anos… ). Porém, não é no terreno do direito constitucional que a batalha política com Marcelo deve ser travada. Ele dispõe sempre de um recurso de alcance enorme: o direito à palavra, seja em contactos de rua seja numa mensagem aos deputados, ou mesmo na convocação extraordinária do parlamento, e, obviamente, do direito de dirigir a palavra directamente aos cidadãos. A questão da constitucionalidade pode-se pôr – mas é secundária: se o povo gosta do habito que o monge está a fazer, é na discussão das suas opções políticas, e não no facto de estar a trabalhar á frente de todos que devemos centrar a nossa argumentação.
No próximo texto passarei a analisar a estratégia de Marcelo frente à “geringonça”
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