10 Fev Maioria absoluta inesperada, «voto útil» à esquerda, fragmentação à direita
O Partido Socialista (PS) português obteve ontem uma maioria absoluta de deputados (117/230, com 41,8% dos votos; 108 em 2019) inesperada. Ou seja, a esmagadora maioria das sondagens publicadas durante últimas duas semanas, nomeadamente as derradeiras de 28-1-2022, davam uma situação de empate técnico entre o PS, a descer ligeiramente, e o PSD (centro-direita, liberal), a crescer sustentadamente, bem como um empate técnico entre as esquerdas e as direitas. O retrato fornecido pelas sondagens era, pois, o de que estava tudo em aberto, mas a maioria absoluta era uma miragem improvável; tanto poderia haver uma maioria de esquerdas no Parlamento, a necessitar de entendimentos para se formar governo, como uma maioria de direitas, idem. Todavia, apesar de ainda faltar a contabilização dos votos dos dois círculos da emigração (com 2 lugares cada um, geralmente repartidos entre PS e PSD), sabemos já hoje que o PS teve uma inesperada maioria absoluta e governará a solo, as esquerdas radicais perderam muitos votos e lugares (Bloco de Esquerda, BE de 19 para 5 deputados; Comunistas e o seu satélite, os Verdes, PCP-PEV de 12 para 6, com PEV fora do parlamento e comunistas com longa presença também: o constitucionalista António Filipe e o ex-líder parlamentar, João Oliveira; Partido das Pessoas, Animais e Natureza, PAN de 4 para 1; a exceção foi o LIVRE que manteve 1 lugar). À direita, a situação é mais complexa. O PSD aumentou muito ligeiramente os votos, mas passou de 79 para 76 lugares. O histórico partido conservador da direita, próximo da democracia cristã, o CDS-PP, ficou pela primeira vez, desde 1975, fora do parlamento. Mas há duas estrelas em ascensão: a direita radical populista, Chega, que passou de 1 deputado para 12, sendo agora o terceiro maior grupo parlamentar. E a Iniciativa Liberal, um novo partido fortemente liberal nas três grandes dimensões do liberalismo, que passou de 1 para 8 lugares.
Por um lado, Portugal continua a ser uma exceção no Sul da Europa depois da Grande Recessão: apesar da fluidez do sistema partidário, o seu formato continua próximo do bipartidarismo imperfeito (PS e PSD juntam 83,9% dos lugares e 69% dos votos), longe da fragmentação e do governo partilhado típico na Europa do Sul. Por outro lado, com o fortíssimo crescimento do partido da direita radical populista, Chega, Portugal deixou de ser uma exceção quanto à fraca presença da direita radical populista no sistema político: o Chega passou a terceiro partido no parlamento. É o típico partido populista que aposta na narrativa da dicotomia da elite (corrupta e privilegiada) perante o povo (incorrupto e desconsiderado pela elite), pondo pois muita enfase nas questões da corrupção, e também nos alegados privilégios das minorias étnicas, dos refugiados e dos mais desprotegidos em termos socioeconómicos, em muitos casos recipientes de apoios sociais do Estado e que, segundo o Chega, não querem trabalhar e são sustentados por quem trabalha. No fundo, o Chega aposta na política do ressentimento das classes baixas e médias baixas que, não raro são trabalhadores pobres devido aos baixos salários, e se sentem discriminados face aos grupos recipientes de apoios sociais.
Mas o que explica esta inesperada maioria absoluta do PS? E a incapacidade do PSD em liderar uma maioria alternativa de direitas? Posso aqui lançar apenas algumas hipóteses explicativas que carecem de aprofundamento com sondagens pós-eleitorais e outros métodos. Primeira hipótese, as sondagens estavam erradas e induziram-nos em erro. Não me parece: as sondagens portuguesas costumam, em média, apresentar boa performance ao longo do tempo, nomeadamente as mais próximas do ato eleitoral. Tanto mais que, nomeadamente, empresas usando diferentes métodos (e excluindo aqui as tracking pools) chegaram a resultados semelhantes ao longo da campanha e especialmente as publicadas em 28-1-2022 (CESOP/Universidade Católica e GFK/Metris/ICS e ISCTE). Parece-me mais plausível pensar que a situação renhida retratada pelas sondagens, com possibilidade de ganhar PS ou PSD, de maioria de esquerdas ou de direitas, poderá ter levado muitos eleitores das esquerdas radicais a concentrarem, na última hora, o voto no PS, de modo a evitar a vitória da direita (com privatizações, alegada privatização da saúde, descida de impostos para as empresas, só mais tarde para os trabalhadores, etc.). (Esta poderia ser uma hipótese 1a, alternativa à hipótese 1)
Segunda hipótese, a campanha eleitoral do PS teria sido notável e a do PSD desastrosa. Nada disso. A campanha do PS foi um case-study do que não se deve fazer: começou por dizer que poderia renegociar com a esquerda, depois que só a maioria absoluta daria estabilidade, finalmente que aceitaria qualquer veredicto popular e negociaria com todos para governar, se fosse preciso. O PSD, pelo contrário, manteve sempre as portas abertas para um governo de direitas, com acordos escritos, e, portanto, com maior estabilidade esperada.
Terceira hipótese, os partidos da esquerda radical teriam sido penalizados por terem chumbado o orçamento, pelo contrário o PS teria beneficiado disso. Esta hipótese tem dois problemas fundamentais: por um lado, durante a legislatura 2019-2022 o PS recusou um acordo escrito de legislatura com o BE, o qual teria dado estabilidade à legislatura, e passou o tempo a falar de entendimentos à esquerda mas a votar maioritariamente com o PSD no Parlamento (cerca de 60% das vezes; o simétrico do que tinha acontecido na legislatura 2015-2019 em que as esquerdas governaram unidas); por outro lado, o PAN ajudou a passar todos os orçamentos do PS entre 2019 e 2022, mas também teve perdas severas (3/4 do grupo parlamentar esfumou-se). Por tudo isso, a primeira hipótese parece-me a mais plausível, embora não seja de excluir também que alguns dos eleitores de esquerdas tenham aderido à narrativa (proposta pelo PS e pelos mass media mainstream) associada à terceira hipótese. E, claro, é também plausível pensar que as esquerdas radicais (BE e PCP-PEV) tenham sido penalizadas por uma parte dos seus eleitores por terem elevado demasiado o nível de exigências para se absterem no orçamento para 2022, e desse modo terem permitido a sua aprovação.
Fontes:
- Texto: Versão revista e aumentada (feita a pedido da politóloga Eftichia Tepereglou para a imprensa grega, com generosa tradução da própria para grego) de originalmente saído em castelhano (em generosa tradução do jornal) no El País (online): Mayoría absoluta inesperada, «voto útil» a la izquierda y fragmentación a la derecha, 1-2-2022. A ligação para o artigo saíd0 na versão grega está aqui.
- Imagem: wikipedia, postada em 3-2-2022, extraída pelo autor em 10-2-2022.
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