24 Set Macron passa o testemunho à ultradireita, avant la lettre
O Presidente da República Francesa, Emmanuel Macron, nomeou recentemente como primeiro-ministro um homem vindo do gaulismo, e dos seus herdeiros contemporâneos, Les Republicans (LR), Michele Barnier. Michele Barnier é um septuagenário com uma riquíssima experiência política, foi nomeadamente o negociador do Brexit, representando a União Europeia face ao Reino Unido. Portanto, tem uma experiência de negociador que pode ser muito útil na difícil situação política e parlamentar que se vive em França. É um estadista, é certo. Mas é um homem situado bastante à direita, ainda que no campo da chamada «direita republicana» (por oposição à ultradireita, não republicana, leia-se, na gíria francesa: não democrática). Barnier tem, todavia, posições bastante à direita em matérias sensíveis para os franceses: uma posição muito recuada face á reivindicação dos contestatários para a idade de reforma (propôs 65 anos, quando quer a esquerda – Noveaux Front Populaire: NFP -, quer a ultradireita propõem 60 anos), propôs uma moratória de 5 anos para impedir a entrada de imigrantes em França, e votou (em tempos) contra a despenalização criminal da homossexualidade, por exemplo. É, portanto, um homem muito conservador, com posições próximas da ultradireita em matéria de imigração. O nome agora proposto por Emmanuel Macron foi escolhido pelo Presidente porque foi o único que obteve garantias de não ser censurado ab initio, seja pelas direitas republicanas, seja pela ultradireita de Marine Le Pen e de Javier Bardella. Ou seja, este governo vai avançar porque tem o beneplácito da ultradireita. Os outros nomes chumbados, nomeadamente pela ultradireita do RN (Rassemblement Nationale), foram Bernard Cazeneuve, da área do PSF (Partido Socialista Francês), e Xavier Bertrand, do campo dos LR. Ou seja, Barnier avança porque foi o único a fazer o pleno entre as direitas republicanas (Renaissance/R, Ensemble/E, Modem, Les Republicans, DVD, «Diversos de Direita») e a ultradireita (RN). Portanto, é um governo apoiado pela ultradireita e que não tem nenhum tipo de legitimidade política, uma situação inédita na V República Francesa (segundo afirmou, e muito bem, um antigo conselheiro especial do Presidente Sarkozy na BFM TV em 20-9-2024), a sua legitimidade é apenas constitucional (por ser uma prerrogativa do presidente nomear o primeiro-ministro).
As duas razões fundamentais para a ausência de legitimidade política do novel governo francês têm a ver com a violação dos resultados eleitorais e parlamentares, em primeiro lugar, e com a violação dos princípios de «barragem da ultradireita» e de constituição de uma «Frente Republicana» para o conseguir, que propiciou os resultados das legislativas francesas na segunda volta, em segundo lugar (sobre este assunto, ver o meu artigo no PÚBLICO, 19/7/2024, «Uma arma contra os partidos anti-sistema, mas até quando? E para quê?»). Em termos de lugares, as esquerdas do NFP – Noveaux Front Populaire (La France Insubmisse: LFI, PSF, Verdes: EELV, PCF) venceram as eleições com maioria relativa de lugares no parlamento (188 / 577 deputados). Recordemos os resultados gerais na segunda volta: NFP, 188 deputados (mais 57 do que em 2022); E/R, 161 (menos 76); RN e aliados do LR/Ciotti, 142 (mais 53); LR (Les Republicans) em modo cordão sanitário, 48 (menos 13); Outros (de esquerda e direita, DVG e DVD), 38 (menos 21). Os grandes perdedores foram o centro, da chamada «Macronia», e os Republicanos. Note-se que uma parte dos LR, liderada por Ciotti, já passou para o campo «não republicano», ou seja, está já na órbita da ultradireita: são aliados. Mas não é só a violação dos resultados das eleições, é também uma questão da violação dos princípios políticos de «barragem da ultradireita» em prol de uma «Frente Republicana», assumidos pela «Macronia» da primeira para a segunda volta. Portanto, para haver respeito dos resultados eleitorais e dos princípios enunciados atrás («barragem da ultradireita» e formação de uma «Frente Republicana») deveríamos ter tido um governo liderado pelo NFP e apoiado formal ou informalmente pelo centro, nomeadamente pela «Macronia» e pelo Modem, que assumiram tal orientação; pelo menos uma tal solução política deveria ter sido primordialmente testada.
Para manter as suas políticas neoliberais, votadas amiúde como decretos presidenciais contra a vontade maioritária no parlamento (a lei das reformas foi votada recorrendo ao 49/3, artigo da Constituição que permite a governação por decreto), Macron e os seus aliados ao centro e à direita preferiram aliar-se à ultradireita. E, por isso, a terceira razão para a falta de legitimidade política do governo Barnier é a seguinte: a constituição do governo, com «n» nomes apresentados e retirados na praça pública nos últimos dias, mais parece a constituição de um casting para um filme, pois não se lhe conhece um programa político a não ser o programa difuso de continuar as políticas neoliberais da «Macronia». Um governo democrático, numa «democracia de partidos», resulta de uma acordo entre forças políticas para cumprir um programa. Vemos acordos para a a distribuição de lugares entre o centro e as direitas, mas programa político, nada vezes nada até agora. Mais, apesar de a lista vencedora na segunda volta das eleições legislativas ser alinhada à esquerda (NFP), daquilo que já se conhece do elenco do gabinete (premier, ministros e secretários de estado), vamos ter, segundo declarou um editorialista alinhado à direita na BFM TV em 21-9-2024, o governo mais à direita desde a premiership de François Fillon sob Nicolas Sarkozy. É Obra.
As opções de Macron e dos seus aliados ao centro e à direita não apenas violam os resultados eleitorais das legislativas, como violam os princípios assumidos pela «Macronia» de «barragem da ultradireita» e de formação de uma «Frente Republicana», e redundam num governo que tem, por ora, na melhor das hipóteses um programa difuso de continuar as políticas neoliberais de Macron. Igualmente importante é o seguinte: este governo é uma solução política, em termos de suporte parlamentar, que abre as portas à ultradireita para a sua entrada na esfera governativa e, portanto, neste sentido representa já uma passagem de testemunho à ultradireita, avant la lettre.
Artigo originalmente publicado no Público, versão impressa e online, de 23-9-2024: aqui.
Foto de Marine Le Pen: Fonte: Diário de Notícias – Denis Charlet, AFP
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