12 Set «Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental»
Vencedor do Urso de Ouro para o Melhor Filme no Festival de Berlim de 2021 (71º edição), o filme «Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental», realizado pelo Romeno Radu Jude, e com uma magnifica prestação da atriz (protagonista) Katia Pascariu no papel de «Professora Hardorcore (1º escalão)», como lhe chama Jorge Mourinha no texto sobre o filme que escreveu para o Ípsilon em 10-9-2021, é uma película rodada em plena pandemia da COVID19 (2020), em Bucareste. Radu Jude usa o tema das máscaras de proteção face ao vírus para nos falar das máscaras sociais e de todas as hipocrisias e cinismos e puritanismos face à sexualidade, ao papel da mulher na sociedade romena, ao passado histórico e ao presente na Roménia (fascista, comunista, e pós-comunista), mas com ecos de certo modo extensíveis a todos os revivalismos puritanistas e hipócritas que grassam por esse mundo fora na longa reação autoritária à «revolução» liberalizadora do Maio de 1968 (e congéneres «revoluções» por essa Europa fora e nos EUA) e suas sequelas.
Esta sátira, ou comédia satírica, está dividida em um prólogo, três partes, e três epílogos (três finais possíveis e diferenciados). É uma reflexão muito séria sobre os temas que referi acima, mas estruturada (em termos de «esquema narrativo», se é que disso podemos falar?) de forma muito inovadora, e não raro hilariante. No prólogo vemos a professora Emi (Katia Pascariu) em cenas de sexo explicito com o seu marido, deliberadamente e consensualmente filmado, sexo oral, coito de várias formas, etc. Podia ser uma cena de um filme porno, mas de tipo caseiro, até porque se ouvem vário ruídos e vozes, nomeadamente da mãe de Emi noutro quarto…. O problema, saberemos em breve, é que o marido de Emi (Eugene), que nunca vemos no filme, colocou as imagens no computador e, inadvertidamente (supõe-se), esqueceu-se de as apagar quando colocou o aparelho a arranjar. A partir daí, o vídeo foi colocado na internet, passou para um site de filmes porno para adultos, depois foi partilhado num blogue, etc.
Na primeira parte, Emi atravessa a pé uma Bucareste caótica, cheia de obras, de carros estacionados em cima do passeio, de carros que não respeitam as passadeiras, uma cidade suja, desorganizada, com um ar terceiro mundista pós-comunista, prenhe de incivilidade. Nesta travessia, em que Emi parece que vai em direção à sua escola e vai falando com o marido ao telemóvel pedindo-lhe que consiga a retirada do vídeo da internet; ele diz-lhe que já retiraram do site de porno para adultos, mas que alguém colocou num blogue; ela pede-lhe que fale com o/a responsável do blogue para retirar o filme porque pode ser despedida.
Na segunda parte, intitulada «curto dicionário de anedotas, sinais e milagres», temos uma parte da película rodada em formato altamente heterodoxo (do ponto de vista narrativo), ou seja, como um conjunto de frescos ou colagens de imagens refletindo sobre todas as hipocrisias da sociedade Romena face ao seu passado e presente fascista, comunista, e pós-comunista, respetivamente, sobre o negacionismo face ao holocausto, sobre a perseguição das minorias (étnicas, nomeadamente os ciganos, sexuais, etc.) e sobre o seu conservadorismo face às mulheres e à sexualidade, transversalmente nos vários regimes políticos.
A terceira parte é passada na prestigiada escola de Bucareste na qual Emi dá aulas e onde, sob a batuta da diretora da escola (que elogia abertamente a competência profissional da «professora hardcore»), se processa uma espécie de julgamento da professora pelos pais e mães e avôs dos alunos, pelo facto de a sua atividade sexual filmada ter ido parar à internet e se ter tornado viral. A plateia julgadora é uma espécie de amostra da alta sociedade romena, mas também de todas as hipocrisias e máscaras sociais que grassam no seu seio, nomeadamente quanto à sexualidade e ao papel da mulher diz respeito. Por exemplo, à alegação do nefasto efeito do visionamento do filme sobre as crianças, responde Emi com a ideia de que o filme foi parar (inadvertidamente) a um site de adultos a que as crianças não deviam ter acesso. Mas os familiares das crianças assumem que algumas pessoas gravaram o filme (nomeadamente eles próprios) e há partilhas subsequentemente feitas, até por eles próprios… Ou ainda, um dos familiares alega que «as putas é que fazem sexo oral» (embora numa linguagem mais vernacular). Revelando também em todo o seu esplendor o atraso social, económico, cultural e moral da sociedade romena, através dos vários regimes políticos. Recorde-se que a ditadura comunista romena era uma das mais personalistas, passadistas (em termos culturais e económicos), como aliás um outro filme romeno mostrou sobre as políticas face ao aborto durante o regime pilotado por Ceausescu, «4 meses, 3 semanas e 2 dias».
Finalmente, temos os três epílogos. No primeiro, há uma votação sobre a permanência da professora na escola, em que os que votam pela permanência ganham largamente aos que votam contra a permanência. Todavia, os que votaram contra declaram aos restantes presentes, nomeadamente à diretora, que os respetivos filhos irão abandonar a escola…. No segundo epílogo, a votação maioritária é contra a permanência da professora na escola, mas gera-se depois uma confusa discussão sobre o universo eleitoral e sobre os que têm e os que não têm direito de voto…. A confusão instala-se, portanto, embora o sentir maioritário pareça ir contra a permanência da professora na escola. No terceiro e mais divertido epílogo, que gera uma certa empatia nos espectadores mais solidários com a professora, quando a votação sobre a permanência da professora está quase a ter lugar, ela transforma-se numa espécie de supermulher e lança uma rede sobre todos os presentes, enclausurando-os sob a rede. Seguidamente, a super Emi enfia gigantescos dildos na boca de todos e cada um dos presentes, numa espécie de sessão sado-masoquista (ele sofrem, mas estavam a pedi-las e parece que até gostam).
No contexto do combate à COVID19 e do uso das máscaras, Radu Jude faz esta obra seminal sobre as máscaras sociais, a hipocrisia e o cinismo, nomeadamente quanto ao papel da mulher, do sexo e da sexualidade, numa das sociedades pós-comunistas mais atrasadas da União Europeia (veja-se o peso comparativo da população empregue na agricultura), herdeira de um dos regimes comunistas mais personalistas e retrógrados da anti esfera de influência da URSS, não apenas económica e socialmente, mas também culturalmente. Esperemos que a Midas Filmes passe a obra a DVD pois é o tipo de obra-prima que dá prazer ver e rever ao longo do tempo.
Fonte da imagem: Katia Pascariu no papel de Emi, em Clavert Journal.
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