
06 Ago «Les Lèvres Rouges», Uma Glamorosa Estória Lésbica e Feminista de Vampiros
Les Lèvres Rouges, em inglês Daughters of Darkness, é um magnifico filme dirigido por Harry Kümel, em 1971, como uma coprodução belga, alemã, francesa e italiana. Do meu ponto de vista, a excelência do filme deriva de quatro elementos fundamentais.
Primeiro, pela criatividade e atualidade na adaptação da história / lenda da Condessa húngara Elizabeth Báthory, séculos XVI-XVII, condenada em 1611 pela morte sangrenta de cerca de 650 jovens e cuja história / lenda está associado a relatos de tortura, assassínio, violência e vampirismo.
Da história original, sintetizada, por exemplo, por Alejandra Pizarnik em La Condesa Sangrienta, Libros del Zorro Rojo, 2012, com belíssimas ilustrações de Santiago Caruso, ficamos a saber que a Condessa mataria as jovens camponesas, necessariamente virgens, com o objetivo de se rejuvenescer e de renovar a sua beleza com o sangue virgem das moças. Essa é também a versão apresentada noutro filme sobre a referida Condessa: Countess Dracula, realizado também em 1971, mas por Peter Sasdy, para a British Hammer Horror Film.
No filme de Harry Kümel, além de apenas sabermos do suposto vampirismo por relatos indiretos e/ou indícios difusos, pois não há cenas explicitas de vampirismo, a condessa Elizabeth Báthory é uma espécie de vampira lésbica e feminista que, depois de chegar a Ostende (na Bélgica), tendo passado por Bruges (onde a imprensa da época relatava o assassínio de quatro jovens, com traços de vampirismo, dada a garganta trucidada), Nice e Montecarlo, tenta e consegue seduzir a noiva de um jovem casal (heterossexual), acabado de chegar ao mesmo hotel em Ostende. Pouco depois de se terem casado, na Suíça natal da noiva, Valérie (protagonizada pela jovem atriz canadiana, Danielle Ouimet) viaja com o noivo inglês, Stefan (protagonizado por John Karlen), em direção a Inglaterra para ser apresentada à mãe deste. Todavia, dada uma avaria no comboio, a viagem para o Reino Unido é adiada e os noivos ficam no Hotel Termal de Ostende, na costa belga do Mar do Norte, quase deserto… pois está-se na época baixa (só porteiro do hotel e os noivos começam por habitar o hotel). Stefan vai tratando a noiva Valérie com uma certa condescendência e superioridade, algo machistas, e, quando a mãe (na verdade, do outro lado do telefone está um homem com ar homossexual, pintado e vestido como se fosse uma mulher) é avisada telefonicamente do casamento, ameaça deserdar Stefan, este trata Valérie com violência (de género), batendo-lhe com o cinto… Entretanto, tinha chegado ao mesmo hotel a condessa Elizabeth Báthory, protagonizada pela diva francesa Delphine Seyrig, com a sua assistente / discípula / serva, Ilona Harczy (protagonizada por Andrea Rau), o segundo par de hospedes no Hotel Termal de Ostende. A Condessa pretende ficar na suite real, mas como está ocupada pelo casal de recém casados, decide ficar no apartamento contíguo, junto com a sua assistente / discípula / serva, Ilona Harczy. Seja pela sua atração por mulheres, a drive lésbica da Condessa, seja pela sua atração fatal pelo sangue feminino, a orientação vampírica de Báthory, seja para salvar Valérie das garras machistas de Stefan, a orientação feminista da vampira, a Condessa (coadjuvada pela sua assistente) vai usar de vários estratagemas para libertar Valérie do machismo do marido, e a «converter» ao lesbianismo e ao vampirismo, objetivos em que será bem-sucedida… Portanto, do meu ponto de vista, temos uma história original de vampiras convertida numa estória de vampiras, lésbicas e feministas, uma atualização prenhe de atualidade: é assim que as estórias originais se transformam em obras de ressonância intemporal e universal. E estamos em 1971, ou seja, em plena eclosão dos movimentos pelo amor livre e pela libertação sexual, na Europa, tal como na América do Norte, ecos do Maio de 68, em França, e do movimento hippie, nos EUA. Note-se que o argumento é da lavra de Pierre Drouot (produtor do filme), Jean Ferry e Harry Kümel (realizador do filme).
Em segundo lugar, do ponto vista da estética cinematográfica e plástica o filme é absolutamente magnifico. Por um lado, como já referimos, não há cenas explicitas de vampirismo, elas são apenas insinuadas, sugeridas, apontadas, indireta e subtilmente, várias vezes ao longo do filme. Por outro lado, o mesmo se poderia dizer das cenas de erotismo, quer lésbico, quer heterossexual, com vários nus: apesar de o filme estar prenhe delas, belíssimas, as mesmas são sempre apresentadas de forma subtil e com um fortíssimo cunho artístico. Adicionalmente, os cenários e a fotografia são absolutamente excecionais, fazendo deste um belíssimo filme «de horror», prenhe de erotismo. Note-se que os exteriores são sobretudo filmados em Ostende, mas também há alguns interiores no Hotel Termal de Ostende, enquanto os interiores são sobretudo filmados no Hotel Astoria de Bruxelas.
Em terceiro lugar, seja do ponto de vista da direção de atores e da performance destes, em primeiro lugar e acima de tudo pela glamourosa representação da francesa Delphine Seyrig, atriz, realizadora e feminista (subscritora do Manifesto das 343, em 1971, em defesa da liberalização do aborto em França), no papel de condessa Báthory. (recorde-se que a diva francesa trabalhou como atriz com grandes monstros do cinema como Joseph Losey, Luis Buñuel, William Klein, François Truffaut, Alan Resnais, Rainer Werner Fassbinder, entre outros) O charme e o glamour da personagem são aliás uma clara citação de papéis desempenhados por Marlene Dietrich, tal como a cena erótica e trágica no chuveiro é uma clara citação de outra idêntica no filme Psycho, de Alfred Hitchcok. As várias citações de clássicos do cinema, devidamente atualizadas e adaptadas, são quiçá o quarto elemento que consubstancia a excelência do filme.
Os quatro elementos juntos justificam claramente a revisitação (ou o visionamento pela primeira vez) do filme, pelo menos na versão DVD.
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Notas:
DVD com áudio em inglês, legendado em francês. Trata-se de um produto com extras fundamentais, não presentes nos habituais canais digitais de cinema, HBO, Netflix, Filmin.
No DVD, há entrevistas aprofundadas com o realizador (e argumentista) Harry Kümel e com o produtor (e argumentista) Pierre Drouot, que são cruciais para uma apresentação geral do filme, para a sua contextualização e compreensão. Adicionalmente, duas entrevistas com duas das atrizes, a atriz canadiana, Danielle Ouimet, que no filme representa Valérie, e a atriz e modelo fotográfico alemã Andrea Rau, que representa Ilona Harczy no filme, ajudam também muito à compreensão do filme e do seu contexto. A diva francesa, Delphine Seyrig, a protagonista do filme no papel de condessa Báthory, morreu precocemente aos 58 anos (em 1990), pelo que não foi entrevistada para os suplementos desta magnifica edição em DVD. No booklet que acompanha o DVD, impresso, há uma longa e informativa entrevista com o realizador (e argumentista) Harry Kümel.
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