Guerra e paz

Guerra e paz

Deveu-se a Plekhanov a chamada de  atenção e a teorização sobre o papel do indivíduo na história. Não porque as suas particularidades individuais imprimiam uma fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos, diz ele, mas porque vê mais longe que os outros e deseja mais fortemente que outros. Estamos, portanto, na melhor definição do que é a liderança. Apesar dos rasgados elogios que têm sido feitos às características pessoais de António Guterres, a sua eleição para secretário-geral das Nações Unidas não terá sido devida a elas, nem ao seu desempenho durante as sessões de avaliação a que cada candidato foi sujeito, mau grado a quase unidade que atravessou as votações, mas principalmente porque ele representa a bissectriz que melhor se ajusta ao actual estado do mundo. Um mundo dominado pelas tentações nacionalistas e, por isso, mais vulnerável à emergência de conflitos armados. É o denominador que por enquanto ainda consegue juntar os fragmentos em que se transformaram os 193 países que dela fazem parte.

Na vida política, em geral, e na vida diplomática, em particular, o que é tornado público é já o resultado de um longo e complexo processo de negociações de bastidores, em que tudo é visto, analisado e ponderado por quem tem capacidade de influência e decisão, neste caso pela comissão permanente das Nações Unidas. Por isso, se António Guterres foi eleito foi sobretudo porque China, Rússia, Estados Unidos da América, França e Inglaterra consideraram que, dada a precariedade da correlação de forças mundial, ele representava a síntese possível das contradições que atravessam o relacionamento entre estes países e sob a sua liderança as Nações Unidas podem constituir uma oportunidade para controlar as tensões geradas pelos vários interesses em presença. António Guterres era o que estava em melhores condições para responder às turbulências políticas, económicas e financeiras que estão na origem dos actuais conflitos.

Porém, quando é colocada como principal prioridade das Nações Unidas a manutenção da paz e a prevenção dos conflitos armados, assim formulados, isso é tudo e coisa nenhuma. A paz  nascida da II guerra mundial foi conseguida à custa da rapina dos países colonizados e  menos desenvolvidos de África e Ásia, principalmente. Com o fruto desses recursos, o ocidente tornou-se próspero e viveu desafogadamente durante os conhecidos trinta gloriosos anos, a partir dos quais teve início o plano inclinado do seu crescimento. Parecia que o mundo se ia tornar menos desigual até à entrada em cena da  financeirização da economia e todos os retrocessos sociais que lhe estão associados, ao ponto de passarem a ser os povos a pagarem com programas de austeridade a ganância dos detentores do capital.

A António Guterres e à organização que vai passar a liderar não vai ser suficiente colocar tropas em cenários de guerra, em menos de nove meses. A liderança que se espera é de intervir e contribuir significativamente para a diminuição das desigualdades entre povos, razão, afinal, da origem de todos os conflitos. Só enfrentado este colossal desafio as Nações Unidas poderão retomar o seu papel de líder mundial na prevenção dos conflitos e na promoção da paz. É sobretudo nessa agenda que vai ser testada a capacidade de liderança de António Guterres.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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