26 Dez Geringonças e Caranguejolas
- Introdução
As eleições regionais dos Açores, realizadas em 25-10-20, produziram um resultado relativamente semelhante às eleições legislativas de 2015, no que à formação do governo diz respeito. Por um lado, a lista mais votada não entrou na solução governativa finalmente encontrada (O PS, nas regionais dos Açores; a coligação pré-eleitoral «Portugal à Frente», juntando PSD e CDS-PP, em 2015). Por outro lado, em ambos os casos, uma aliança política liderada pela segunda lista mais votada formou uma maioria parlamentar alternativa, ancorada em acordos escritos entre os vários partidos de cada aliança, de suporte a um governo sem o partido maioritário. As eleições dos Açores, porém, integraram na maioria parlamentar um partida da direita radical (ou mesmo da extrema-direita, segundo Marina Costa Lobo, «A ‘verdade’ do Chega», Público, 11-8-20; a contrario, ver o livro de Ricardo Marchi analisado no meu texto no JL, julho de 2020), não raro classificado como «racista e xenófobo» (ver neste sentido a entrevista a Morais Sarmento, vice-presidente do PSD e defensor desta aliança com o Chega, no Público, 12-11-20), além de anti-sistema (o próprio partido se define assim e quer fazer colapsar a República em que vivemos, rumo a uma IV República), o Chega.
À esquerda alegou-se que, com esta aliança, o PSD quebrou um desejável e desejado «cordão sanitário» do status quo dos partidos do arco constitucional face ao Chega, incorporando na esfera governativa um partido de duvidosos pergaminhos democráticos, nomeadamente porque tem várias propostas e tomadas de posição que ferem o nosso património constitucional, de raiz demoliberal. À direita, as hostes dividiram-se. A direção do PSD (Rui Rio e o vice-presidente, Morais Sarmento; ou ainda a ex-líder Manuela Ferreira Leite, entre muitos outros, nomeadamente vários líderes das distritais do partido: ver Expresso, 13 e 20-11-20; Público, 12-11-20) acompanharam a solução açoriana; tal como aconteceu com a direção (regional e, pelo menos por arrasto, nacional) do CDS-PP e alguns dirigentes da mesma galáxia (Pedro Pestana Bastos, «O Manifesto dos Açores», Público, 13-11-20). Todavia, um conjunto de intelectuais e políticos alinhados à direita (ver «Abaixo assinado: a clareza que defendemos», Público, 10-11-20; Marques Mendes, Jornal de Negócios, 15-11-2020) criticaram duramente a aliança com o Chega, defendendo uma separação entre «as direitas democráticas» (tradicionais) e a «direita autoritária», «nacional-populista» e «autocrática». No entanto, mesmo os detratores de direita da aliança açoriana culparam o PS e a solução encontrada em 2015 pelo desfecho nos Açores em 2020, fazendo equivaler uma e outra, nomeadamente fazendo equivaler a direita radical do Chega à esquerda radical do BE, PCP e PEV (excetuam-se neste caso Marques Mendes, tal como José Pacheco Pereira, «Injetar lixivia em política», Público, 14-11-20). O propósito deste texto é precisamente analisar as semelhanças e diferenças entre a solução açoriana (por mera facilidade de expressão: «Caranguejola») e a que foi encontrada na sequência das eleições nacionais de 2015 (usualmente e pejorativamente chamada «Geringonça»), extraindo dessas comparações as devidas conclusões em termos de virtualidades e limitações de cada solução.
- As soluções governativas de 2015 e de 2020
Nos sistemas presidenciais, os eleitores escolhem popularmente o governo (isto é, o presidente e o vice-presidente) numa eleição separada da eleição legislativa. Nos regimes parlamentares e semipresidenciais, há um único processo eleitoral, para o Parlamento e, portanto, o governo forma-se (e depende para a sua sobrevivência política) a partir dos resultados das eleições parlamentares para a Câmara Baixa (em caso de sistemas bicamerais), embora em regimes semipresidenciais o PR tenha um papel mediador no processo. É certo que em regimes parlamentares e semipresidenciais que usam sistemas de representação maioritária (de maioria relativa, à inglesa, ou de maioria absoluta, à francesa) para a eleição da Câmara Baixa há uma muito maior identificabilidade a priori da solução governativa do que em sistemas de representação proporcional: o eleitor sabe a priori que o partido vencedor liderará, em princípio, o governo (embora possa haver surpresas). Em sistemas de representação proporcional como o nosso, a identificabilidade a priori do governo é menor, e soluções com a açoriana de 2020 ou a nacional de 2015 são comuns, inteiramente legitimas e fazem parte consubstancial das regras do jogo.
Em 2015, tivemos um governo minoritário do PS apoiado em acordos parlamentares de legislatura com os partidos da esquerda radical (que asseguravam alguma coerência ideológica, e inteira estabilidade para a legislatura). Em 2020, temos nos Açores um governo de coligação minoritário (composto pelo PSD, CDS-PP e PPM) apoiado em acordos de incidência parlamentar com o IL e o Chega (que asseguram pelo menos inteira estabilidade para a legislatura). Claro que a natureza de micropartidos destes últimos (e mesmo dos pequenos partidos que integram o governo regional) lhes dá muito menos poder na aliança açoriana do que tiveram as forças minoritárias mas de muito maior dimensão (BE e o PCP-PEV) na aliança nacional de 2015; mas se o Chega crescer significativamente e o PSD reeditar um acordo de incidência parlamentar(regional ou nacional), como tem sugerido as declarações dos seus dirigentes, terá obviamente muito maior influência, mais ou menos proporcional ao seu nível de crescimento… Portanto, do ponto de vista formal, do regime constitucional e do modelo de democracia, ambas as soluções são inteiramente legitimas.
- A diferencial natureza dos partidos da esquerda radical e da direita radical
Aquilo que se pode discutir é, política e substantivamente, se, por um lado, o Chega é equivalente aos partidos da esquerda radical portuguesa e, portanto, por outro lado, se nada justifica uma política de «cordão sanitário» face ao Chega – sobre as diferentes «Estratégias partidárias para lidar com os novos extremismos políticos», ver o nosso artigo no JL, fevereiro de 2019. Pela nossa parte, pensamos que o Chega tem uma natureza completamente diferente da dos partidos da esquerda radical e, como tal, justificar-se-ia uma política de «cordão sanitário». Primeiro, fazer equivaler a esquerda radical à direita radical portuguesas é esquecer que Portugal viveu durante 48 anos num regime ditatorial alinhado à direita, contra o qual se bateram abnegadamente e com o do sacrifício da própria vida, das suas carreiras profissionais e das suas vidas pessoais, muitos dos membros e dirigentes da esquerda radical portuguesa (e seus antepassados já falecidos), enquanto que no Chega não só não há nada disso, como há inúmeros simpatizantes de regimes autoritários de direita. Portanto, uma tal equivalência é não apenas a-histórica, como é ofensiva da memória daqueles que deram a vida lutando contra a ditadura. Segundo, porque o Chega põe em causa elementos chave da ordem constitucional e democrática portuguesa (por exemplo, num recente projeto de revisão constitucional entregue na AR propõe-se abolir, por exemplo, artigos da CRP que constituem limite material de revisão, nomeadamente aqueles que dizem respeito à forma republicana de governo e a direitos, liberdades e garantias dos cidadãos: Diário de Notícias, 9-10-20), enquanto BE, PCP e PEV aceitam plenamente, nas palavras e nos atos, tal ordem constitucional e democrática. Nomeadamente, há muito do que tais partidos abandonaram, nas palavras e nos atos, a ideia de tomada revolucionária do poder, respeitando inteiramente os processos eleitorais democráticos, ou a ditadura do proletariado. Terceiro, ao propor a privatização de todas as funções do Estado, exceto as funções de soberania, o Chega põe em causa o consenso constitucional e democrático quanto ao Estado Social português, até agora respeitado por todos os partidos, do BE ao CDS-PP. Quarto, o Chega propõe um ultraliberalismo na esfera doméstica junto com um protecionismo nacionalista na arena europeia, aproximando-se claramente da eurofobia, enquanto BE, PCP e PEV são muito mais eurocéticos do que eurofóbicos.
- Virtualidades e problemas da solução encontrada nos Açores
A aliança governativa dos Açores em 2020 é, do ponto de vista formal e constitucional, tão legitima quanto a aliança nacional de 2015, e é essa é a sua primeira virtualidade. Três outras virtualidades são propiciar a alternância (24 anos depois), assegurar a estabilidade governativa, através de um acordo escrito entre os cinco parceiros, e estimular a formação/consolidação de um bloco político alternativo à esquerda (PS, BE, PCP-PEV e PAN). Já se percebeu que o centrismo pragmático de Rui Rio acomodará também nacionalmente a direita radical numa eventual aliança, mas algumas forças de esquerda (o BE, nomeadamente na votação do orçamento para 2021) parece que ainda não perceberam isso… Apesar de tudo, pelas razões expostas acima, penso que se justificaria uma política de «cordão sanitário», até porque este acordo vai alimentar o crescimento e a normalização do Chega, tornando, na prática, injustificável o voto útil nas direitas tradicionais.
Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna mensal «heterodoxias políticas», edição de 2 a 16 de Dezembro de 2020.
Fonte da foto: blogue «A Voz da Girafa».
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