Fora da caixa

Fora da caixa

Nos passados dias 12 e 13 realizou-se no Porto o 11º Congresso da Federação Nacional dos Médicos,  que congrega os sindicatos médicos do Norte, Centro e Sul do país. Um dos temas que esteve em discussão, no qual participei e em que também esteve presente uma personalidade ligada ao sector privado da hospitalização, foi a reforma do SNS e a delimitação de sectores. E na área da hospitalização, particularmente relevante foi a verificação, em dez anos, 2005-2014, da ascensão da hospitalização privada na produção de cuidados. No conjunto, público e privado, estes passaram, por exemplo, de 19 para 31% do total das consultas externas, de 8 para 18% dos internamentos; de 8 para 15% das urgências, de 22 para 28% da imagiologia, de 31 para 47% das endoscopias, já realizam tantas consultas de ginecologia/obstetrícia, oftalmologia  ortopedia com os hospitais públicos, e são dominantes na medicina dentária e na hemodiálise. E quanto ao financiamento, naquele período, considerando toda a produção, o sector público foi aumentado de cerca de 481 milhões de euros, enquanto o sector privado cresceu mais de mil milhões de euros, com proveitos na ordem dos 1 500 milhões de euros, em 2014. Estes valores configuram e são indicativos de que o SNS já passou de dominante para predominante na produção de cuidados de saúde hospitalares.

Chegou-se a esta situação porque a partir de dada altura, principlmente desde o princípio do século, o sector público começou a recuar na cobertura das necessidades da população, com o encerramento de muitos serviços de proximidade, criando uma terra de ninguém imediatamente ocupada por unidades ligadas ao sector privado. É assim que se chegam àqueles valores, e com o actual presidente da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada a declarar, invocando uma espécie de Tratado de Tordesilhas, que “O futuro da saúde em Portugal passará inevitavelmente por hospitais privados” (Lusa, 16/10/2016).

Foi afirmado no Congresso que a reabilitação e a requalificação dos hospitais públicos e do SNS em geral, não passam tanto por continuar a construir-se mais instalações, sobretudo hospitais, mas por uma política de saúde em que o SNS dê resposta pronta na doença e simultaneamente faça um significativo investimento na promoção da saúde e na prevenção da doença. Sintomático do pouco que se fez neste sector é a constatação de que em 40 anos, desde o Relatório Lalonde até ao Relatório da Fundação Calouste Gulbenkian, coordenado por Nigel Crisp, e que no essencial retoma as orientações do antigo ministro da saúde do Canadá, pouco ou quase nada se passou em Portugal. E pouco ou nada se passou porque enquanto não se sair da caixa, enquanto não se passar a porta das instituições onde se prestam cuidados na doença e começar-se a trabalhar com os actores sociais das comunidades locais, o que eventualmente se possa vir a passar fica infinitamente aquém do que se devia  passar.

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Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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