Fernando Medina: o caos total na governação urbanística

Fernando Medina: o caos total na governação urbanística

De repente, em meados de 2016, a Câmara Municipal de Lisboa (CMLx) decidiu iniciar obras em várias zonas da cidade, mais ou menos ao mesmo tempo, contribuindo para agravar desmesuradamente o já de si muito caótico trânsito. Primeiro, são as inúmeras obras no eixo central (Avenidas da República e Fontes Pereira de Melo, Praça do Saldanha e Picoas), e é a requalificação da segunda circular (onde foram, apesar de tudo, abandonados os megalómanos projetos iniciais,). Segundo, há o programa «pavimentar lisboa», que pretende recuperar os pavimentos para peões e automóveis em 150 ruas, designadamente em ruas situadas em algumas vias muito movimentadas (Avenidas Alexandre Herculano e Rodrigo da Fonseca, 24 de Julho e de Ceuta). Terceiro, é o programa «uma praça em cada bairro» que obrigará a 31 intervenções em zonas como o Largo da Graça, o Largo de Santos, a Rua de Campolide, em Sete Rios, na Praça do Chile, no Largo do Leão, entre outros.   Por causa disto, está também instalado o caos no transito no Cais do Sodré e no Campo das Cebolas. Tendo em conta a proximidade das eleições, mas também o facto de o executivo em funções (e a maioria que o suporta) ser um gabinete de continuidade, pelo que não terá estado propriamente a estudar os dossiês desde as autárquicas de 2013, é impossível não pensar em eleitoralismo, seja pelo timing das obras, seja pelas suas extensão e simultaneidade.  Mas há uma outra questão relevante que deve levantar-se a respeito destas obras: ficará a cidade, nomeadamente a vida dos seus residentes (e dos os que nos visitam por movimentos pendulares, turismo ou outras razões), com maior qualidade e bem-estar no final das obras? Parece-me que é altamente duvidoso que assim seja, e por isso começarei por apresentar o racional aparente de muitas destas obras e os benefícios esperados para a cidade, para depois demonstrar que os benefícios esperados são em muitos casos altamente duvidosos porque todo este processo evidencia uma espécie de «construção da casa pelo telhado», de forma extremista, inconsistente e incoerente.

Comecemos por apresentar o racional de muitas destas obras e dos benefícios esperados para a cidade. Em muitos casos, parecem estar por detrás destas intervenções os seguintes objetivos: primeiro, contribuir para uma cidade ambientalmente mais equilibrada e com melhores condições para o seu usufruto pelos peões (passeios mais largos e com mais e melhores zonas de usufruto, as praças renovadas) e pelos utilizadores de bicicleta (mais vias clicáveis, sobretudo nas zonas centrais); uma cidade mais bela e ambientalmente mais sustentável (com mais árvores, com mais e mais belas zonas de lazer e usufruto); uma cidade com menos carros. Em abstrato, é difícil não estar de acordo com tais objetivos genéricos. O problema é que uma coisa são os objetivos genéricos, outras muito distintas são, primeiro, o equilíbrio esperado face a outros objetivos igualmente importantes e razoáveis; segundo, é crucial saber se tais objetivos são concretizados de forma planeada, consistente e coerente. Ora é precisamente aqui que «a porca torce o rabo», e muito, do meu ponto de vista!

Como disse, todo este processo evidencia um défice de planeamento estruturado, extremismo na forma de defender a ideia de cidade sem carros, e muita inconsistência e incoerência na forma de planear, operacionalizar e implementar tudo. Comecemos pela ideia de uma cidade sem carros, ou pelo menos de uma cidade com muito menos carros, como parece ser objetivo da maioria que nos governa na CMLx. Neste domínio, há que sublinhar um evidente extremismo na forma de conceber e operacionalizar esta ideia. Quem vir as obras em várias zonas da cidade verificará que há um crescimento desmesurado dos passeios e uma redução igualmente desmesurada das vias para circulação automóvel. Vias mais amigas dos peões e dos utilizadores de bicicleta são uma coisa boa, mas tal objetivo deve ser prosseguido com equilíbrio e moderação porque há moradores no concelho de lisboa, muitos deles têm carro e, do meu ponto de vista, têm direito a terem os seus automóveis e a terem lugares de estacionamento em número suficiente e a preços razoáveis nas zonas ondem residem. Mais, deve ser a Câmara a providenciar isso mesmo, nomeadamente com parquímetros em todas as zonas da cidade, e com tarifas substancialmente reduzidas para os moradores. Não é isso que é feito: a Câmara parece querer obrigar os moradores a venderem os seus carros, tal é o extremismo e a falta de moderação na conceção e implementação da ideia de uma cidade sem carros. Em muitas zonas do centro, nomeadamente nas Avenidas Novas, mas também em zonas menos centrais como Benfica, as vias para circulação automóvel irão são reduzidas à passagem única de um veículo de cada vez.  Por um lado, isto é perfeitamente incoerente e inconsistente com a prática deste executivo camarário (na linha de muitos outros anteriores) de ser totalmente incapaz de, sequer, impedir o estacionamento em segunda mão em inúmeras vias da cidade. Dou o exemplo de Benfica porque ele é paradigmático de zonas residenciais equivalentes na área do concelho de Lisboa. Pense-se, por exemplo, nos dias de jogo no estádio da Luz. Como há várias entradas de metro para ter acesso ao estádio (Colégio Militar e Alto dos Moinhos), os adeptos do futebol podem muito bem deixar os carros nas entradas da cidade e vir de metro para o estádio. Porém, como não há nem parquímetros nem cumprimento mínimo da lei, é ver os carros estacionados por todo o lado (desde as imediações do estádio até à zona do Centro Comercial Fonte Nova, inclusive), em cima dos passeios, nas zonas relvadas, em segunda fila, e sempre impedindo os residentes de estacionarem e dando um ar de perfeita anarquia na cidade de lisboa.   A inconsistência da CMLx é também muito evidente no caso das vias clicáveis. O executivo parece muito empenhado em construir novas vias nas Avenidas Novas, por exemplo, mas porque é que não começou por recuperar as inúmeras vias já existentes, em várias zonas da cidade, em estado de degradação e em que se vê de tudo (carros lá estacionados, peões a passear nas vias para bicicletas, etc.) por manifesta ausência de policiamento e/ou de fiscalização capazes de fazerem cumprir as leis e os regulamentos?

Finalmente, todo este processo devia traduzir uma estratégia planeada, coerente e estruturada para evitar que os moradores dos concelhos limítrofes trouxessem os seus carros para dentro da cidade. Tal conseguir-se ia através de um maior investimento nos transportes públicos, na criação de grandes parques para automóveis à entrada da cidade (a preços muito reduzidos, quiçá gratuitos, para que os automobilistas pudessem deixar os seus carros à entrada da cidade e vir de transportes públicos para o centro) e, adicionalmente, na criação de parquímetros em todas as zonas da cidade (para que os automobilistas que vêm de fora de Lisboa não trouxessem tanto os carros para dentro da cidade), e com tarifas substancialmente reduzidas para os moradores. Nada disso é, em geral, feito. Veja-se o exemplo paradigmático de Benfica: não há parquímetros em lado nenhum, desde a zona do Fonte Nova até ao Alto dos Moinhos e à zona da agência de notícias Lusa, e o estacionamento é perfeitamente caótico; os moradores têm a vinda feita num inferno porque não conseguem estacionar dado que todos os automobilistas de fora trazem o carro para aqui. Quem quer saber de uma nova praça na zona do Centro Comercial Fonte Nova, de que se fala agora, quando há este caos total no estacionamento e os moradores não têm condições mínimas para estacionar os seus carros? O interesse é nenhum: basta de show-off pré-eleitoral!

Post-scriptum:
(*) O presente texto saiu originalmente no Público, a 3-11-2016, como «Começar a casa pelo telhado, de forma extremista, inconsistente e incoerente», mas como hoje (27-11-2016) há jogo do Benfica e o caos total está instalado nas redondezas (bem alargadas!) do estádio, com a total passividade e incúria das autoridades (num percurso de jogging de uma hora, 17h-18h não vi um único polícia…), decidi repô-lo aqui hoje. Chegado do estrangeiro, sai para fazer um pouco de jogging e que foi que vi? Logo à saída de casa, em frente ao Fonte Nova, vi carros na estrada de Benfica em segunda mão e por cima de todos os relvados, logo a seguir à curva da Agência Lusa em duas faixas: se vier um camião maior ou um carro dos bombeiros (para apagar um fogo, por exemplo), não passa, pura e simplesmente!… Na estrada das laranjeiras e até ao Colégio Militar, por exemplo, há tantos carros em cima de tantos passeios que os peões têm que fazer a maior parte do caminho pela estrada, e nem sequer falo dos handicapés, são todos os peões!… Junto ao bairro da Quinta da Luz (e na Rotunda da Reinaldo dos Santos, mais à frente), mais uma vez há carros por todo o lado, em cima das passadeiras, em cima das pistas das bicicletas, nos passeios, em segunda fila, no meio da via, etc. Tal como junto ao Fonte Nova, o caos é de tal ordem que se vier um carro dos bombeiros, para apagar um fogo, não passa, pura e simplesmente!… Há carros estacionados até na 2ª circular e na Avenida Lusíada… Polícias, num percurso de cerca de uma hora, a correr, não vi nem um… em suma, o caos total em todo o seu esplendor e com a total passividade das autoridades!… Péssima, esta gestão urbanística do Fernando Medina!

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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