27 Set Elogio dos vetos presidenciais em defesa da qualidade da democracia
- Introdução
O atual Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), tem tido um papel muito significativo e marcante. Seja pelo contraste face à crispação e impopularidade com que terminou o segundo mandato Cavaco Silva (CS), seja pela sua proximidade com a cidadania (que também contrasta com o exercício presidencial do anterior inquilino de Belém), seja pela grande atenção dada às questões da cultura e do livro, entre várias outras coisas relevantes das quais se destaca uma, absolutamente fundamental, a normalização institucional do acesso da esquerda radical (BE, PCP e PEV) à esfera governativa. Recorde-se que a anterior legislatura, positivamente avaliada pelos portugueses, nomeadamente pelos constituintes das várias esquerdas, ficou marcada por um governo minoritário do PS, mas com apoio parlamentar sólido e fixado em acordo escrito com todos e cada um dos partidos da esquerda radical, que durou toda a legislatura e cumpriu todas as suas promessas fundamentais. Ou seja, foi a primeira legislatura do período democrático e constitucional português que pôs fim ao cisma das esquerdas portuguesas. Como é bem sabido, o PR CS tentou até ao limite impedir a entrada da esquerda radical na esfera governativa, enquanto que o PR MRS, quer durante a sua campanha para a eleição de 2016, quer durante todo o exercício do seu primeiro mandato, normalizou tal incursão das várias esquerdas no governo. Ficará na história por isso, ainda por cima sendo um PR de extração no centro-direita. Não decorre daqui necessariamente que defendamos que os socialistas devam apoiar MRS na sua recandidatura a PR, e prescindam de apresentar um candidato próprio dessa área política, mas isso é matéria para outro artigo… O assunto de hoje são três diplomas que o presidente vetou (ou provavelmente vetaria), todos propostos pelo PSD, mas apoiados pelo PS (embora com dissidências significativas nos dois campos), e que comprimem a qualidade da democracia. Na verdade, o PR vetou apenas os dois primeiros (direito de petição e frequência dos debates sobre a Europa), relevando assim a sua independência face ao seu partido (e ao PS), e (supomos) só não vetou o terceiro (sobre a redução frequência dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, PM, no parlamento) porque tal diz respeito ao regimento da Assembleia da República (AR) e neste domínio não há lugar a intervenção presidencial (embora se intua, pela abordagem do diploma sobre debates europeus, que também aqui haveria lugar a reservas presidenciais).
- O veto à compressão do direito de petição
De algum tempo a esta parte nota-se, na generalidade das democracias ocidentais, Portugal incluído, um crescente afastamento dos cidadãos face à política institucional (crescimento da abstenção eleitoral, redução da militância partidária, etc.) e uma crescente insatisfação com o funcionamento das instituições democráticas. É neste contexto que deve ser entendida a atualização do direito de petição, ou seja, como uma forma de facilitar a participação dos cidadãos na política parlamentar e de criar condições para um mais fácil envolvimento no processo deliberativo e quiçá legislativo. Assim, a lei nº 43/90 veio estipular o direito de petição e, em 2005, tal lei foi revista para permitir as petições por via eletrónica (e-petições) (Tiago Tibúrcio, «O Parlamento e os cidadãos em Portugal: o direito de petição, antes e depois da troica, à luz dos critérios da eficácia», in André Freire et al, Crise Económica, Políticas de Austeridade e Representação Política, pp. 235-258). Neste e noutros estudos, o autor detetou várias evoluções positivas, nomeadamente: primeiro, uma crescente utilização deste instrumento pelos cidadãos, mesmo nos tempos da crise; segundo, uma crescente redução das desigualdades na participação com envolvimento a subir dos cidadãos individuais, em detrimento das forças sociais mais organizadas. Ou seja, maior e menos desigual participação política no processo parlamentar.
No regime vigente (Lei nº 43/90), uma petição com mais de 4 mil peticionários deve ser obrigatoriamente discutida em plenário, sendo as restantes discutidas em comissão parlamentar. Os signatários da proposta de alteração regime vigente (Decreto nº 55/XIV)), todos deputados do PSD depois coadjuvados pela maioria dos parlamentares do PS, devolvido pelo PR à AR sem promulgação, defendem que só as petições mais de 10 mil assinaturas possam ser debatidas em plenário, sendo todas as restantes remetidas para comissão, com vista a racionalizar o trabalho parlamentar e pela facilidade em organizar uma petição via sistema digital. O PR entende, pelo contrário, que tal não se justifica porque dá um sinal negativo de fechamento da AR e de desconforto quanto à participação dos cidadãos no processo democrático-parlamentar, além de que não houve aumento de petições de 2017 para 2018 ou para 2019. E recomenda que se pondere mitigar os contornos de tal alteração. Não podíamos estar mais de acordo com o PR.
- O veto à compressão da frequência dos debates sobre a Europa
A importância da Europa na política doméstica de todos os países membros da União
Europeia (UE) é avassaladora. Por exemplo, num artigo publicado em 2005 na revista Análise Social (vol. XL, 177, p. 769), «As Eleições de Junho de 2004 para o Parlamento Europeu: Ainda Eleições de Segunda Ordem?», o prestigiado politólogo alemão Hermann Schmitt dizia-nos o seguinte: « Segundo uma série de opiniões de especialistas sobre o peso relativo da ´Europa’ no processo legislativo em 28 domínios políticos, hoje em dia metade de toda a legislação significativa nos referidos domínios tem origem em Bruxelas, e não em Berlim ou Bratislava, nem em qualquer outra capital nacional.» De então para cá, por um lado, se alguma coisa mudou foi para uma ainda maior importância das instituições europeias na produção das políticas públicas; por outro lado, apesar de alguns avanços na democratização das instituições da UE, a verdade é que o locus da democracia continua a situar-se na esfera nacional. Daí que, de então para cá e nomeadamente com o Tratado de Lisboa (2007), se tenha fortalecido o papel dos parlamentos nacionais no processo de construção europeia, nomeadamente com debates em plenário sobre assuntos europeus. Por isso, o regime vigente (Lei nº 43/2006), prevê «um debate sobre temas europeus, em plenário da AR, antes de cada reunião do Conselho Europeu, ou seja, em média 6 ou mais debates anuais.» Todavia, de acordo com os deputados do PSD que propuseram a alteração Nº 46/XIV, devolvida sem promulgação à AR, com vista a valorizar os debates europeus, em plenário estes passariam a ser apenas dois anuais, só mesmo sobre o tema Europa, antes do início de cada presidência semestral do conselho, sendo os restantes remetidos para comissão parlamentar (salvo convocatória excecional). O PR discorda, nomeadamente porque uma comissão parlamentar não é o mesmo que o plenário e porque, por isso mesmo, dá a ideia de uma «desvalorização dos temas europeus e do papel da AR perante eles». Propõe, por isso, como «politicamente mais adequado, prever mais um debate em plenário, a meio de cada semestre (…).» No mínimo, diz ele. Não podíamos estar mais de acordo com o PR.
- A ausência de veto sobre a redução da frequência dos debates com o PM
Neste pacote de «reformas» aprovado na AR em 24 de julho de 2020, há uma outra, também oriunda de um grupo de deputados do PSD e votada maioritariamente por PSD e PS, embora com dissidências significativas, que o PR não vetou. Como explicámos acima, pensamos que não o fez apenas porque tal matéria faz parte do regimento da AR e sobre tal matéria o PR não se pronuncia. Falamos da passagem da frequência dos debates quinzenais com o PM na AR, que vem desde a reforma da AR de 2007 e que tem sido positivamente avaliada quer por todos os líderes parlamentares até pelo menos 2014, quer por vários académicos especialistas no assunto, a uma cadência de um a cada dois meses (ver André Freire et al, «Em defesa dos debates parlamentares com o primeiro ministro», Público, 1-8-2020). Ao contrário do que possa pensar-se, a função legislativa dos parlamentos tem perdido terreno face aos governos, seja devido à crescente especialização técnica da função, seja devido à globalização e à europeização, sendo hoje as assembleias sobretudo arenas de representação, de ligação da cidadania com o sistema político, e de escrutínio e fiscalização dos executivos. A redução da cadência dos debates quinzenais do PM com a AR, sobretudo num «regime de presidencialismo do primeiro-ministro» como é o nosso, representa uma redução significativa do poder de escrutínio e de fiscalização da AR sobre o gabinete. Seria, por isso e apesar da ausência de veto do PR, também aqui desejável que se ponderasse um meio-termo, quiçá pelo menos uma cadência mensal, que mitigasse o recuo na qualidade da democracia que tal medida representa.
Originalmente publicado no Jornal de Letras, coluna mensal «heterodoxias políticas», quinzena de 9 a 23 de setembro de 2020.
Fonte da imagem: Jornal Médico de 12 de dezembro de 2019.
No Comments