21 Out Eleições presidenciais: está a chegar a hora de optar
As eleições presidenciais tem uma característica singular no nosso panorama politico: são as únicas em que se exigem que um candidato para ser proclamado vencedor obtenha 50% mais um dos votos validamente expressos (sendo que também de modo particular os votos brancos neste caso não são considerados como válidos). Esta situação contrasta fortemente com as legislativas, onde a vitória se obtém por maioria simples, e onde essa vitória carece de ser confirmada em sede parlamentar, muitas vezes através de negociações para a formação do governo. O sistema de voto proporcional que nestas vigora traduz-se numa fragmentação do espectro politico (basta ver que hoje em dia há 10 partidos na AR). Pelo contrário, as eleições presidenciais, que podem necessitar de uma segunda volta, tendem a bipolarizar o espectro em torno de uma dicotomia esquerda/direita, sendo que os candidatos presidenciais necessitam de promover, dentro do seu campo ideológico, as necessárias operações de convergência – ora desde a primeira volta (como a direita praticamente fez em todas as eleições depois da revisão constitucional de 1982, ao contrario da esquerda que apenas em 1996 se uniu desde o inicio em torno de Jorge Sampaio), ora numa possível segunda volta (como tem sido, com raras excepções, a posição das esquerdas que aspiram a esse duelo que só uma vez teve lugar – em 1986 quando Soares derrotou Freitas do Amaral). Em qualquer dos casos, a propositura de uma plataforma que transcenda a base partidária que é, para muitos, o local de partida, é uma necessidade imperiosa. O eleitorado, por seu lado, já deu sobejas mostras de aceitar – e mesmo exigir – dos candidatos presidenciais, à esquerda e à direita, que se distanciem dos seus partidos de origem e ofereçam garantias de um desempenho “independente” do cargo a que aspiram. Ser capaz de combinar a fidelidade a princípios que são matriciais de um universo politico-ideológico amplo com um posicionamento que facilite a convergência entre as várias componentes ora das esquerdas ora das direitas emerge assim como uma virtude de amplo impacto. As esquerdas em Portugal – ou seja, o universo no qual me situo, e que é a matriz deste espaço de comentário – optaram novamente por encarar estas eleições como um exercício a duas voltas (possivelmente levando um pouco longe o seu wishful thinking…). Creio que havia margem para maior dose de imaginação – sobretudo no rescaldo da experiência da geringonça 1.0. Mas a vida é mesmo assim: temos pela frente três candidaturas que se reivindicam do espaço politico-ideológico das esquerdas. E não vamos poder votar em mais do que uma. Fiz a minha escolha, vou-vos dizer das minhas razões
Tenho um bom amigo com traquejo em muitas eleições que usa uma grelha para definir o modo como cada candidatura se posiciona (e no caso dele, que é agente politico e técnico destas andanças, como se deveria posicionar – mas isso é lá com ele). Na base estão as candidaturas de tipo 1: um pequeno grupo político, sem representação em orgãos de Estado, que nada tem a perder e tudo a ganhar; irá fazer uma campanha essencialmente ideológica, atacando tudo e todos, sem preocupações de maior com a defesa do seu curriculum e sem apresentar um programa alternativo. Vem depois as candidaturas de tipo 2: grupos políticos que tem um pé nos órgãos de Estado, mas que pela sua dimensão não se vislumbra que possam vencer. Terão sobretudo uma atitude de critica a quem está no poder, combinado com uma proposta de caracter bastante generalista. De seguida, as campanhas de tipo 3: tipicamente, o partido que lidera a oposição que tem de combinar uma critica cerrada a quem ocupa o poder com a apresentação de um programa alternativo bastante detalhado. Passamos para o lado de quem disputa eleições a partir de uma posição de poder. As campanhas de tipo 4 referem-se a quem está no poder, acossado pela oposição; tem uma tripla tarefa: defender o seu legado, apresentar medidas que prolonguem a sua gestão com alguma novidade, e desenvolver uma critica cerrada às propostas da oposição. As campanhas de tipo 5 ocorrem quando há quem esteja no poder e desfrute de uma situação confortável que não leve a supor que a sua reeleição está em perigo; assim sendo, o mais avisado é defender o legado e pôr a tónica nas propostas para uma evolução tranquila, desprezando por completo os ataques dos adversários. Finalmente, numa situação limite, há a campanha de tipo 6 em que a vantagem do incumbente é tão grande que ele pura e simplesmente desvaloriza por completo a campanha eleitoral, assumindo que é uma formalidade a que há-de se dar o menor relevo possível.
Creio que Marcelo parte para as eleições de Janeiro de 2021 com ideias de fazer uma campanha entre os níveis 5 e 6: irá dar-lhes a menor atenção que puder ser. E as candidaturas das esquerdas? A meu ver, tanto João Ferreira como Marisa Matias, além de se posicionarem politicamente com uma colagem partidária que é difícil de sustentar em campanhas presidenciais, deverão estar englobados no tipo 2: irão associar uma critica por vezes contundente a Marcelo (não há eleitorado que hesite entre qualquer uma delas e o actual PR) com a defesa de um programa politico genérico, próximo da proclamação de valores. Bons resultados nesta eleição serão os que tenham um reflexo positivo no seu posicionamento parlamentar – não os que determinem o desfecho das presidenciais (mas o universo politico-institucional não é assim tão poroso e os riscos são elevados). O surgimento precoce de ambas estas candidaturas limitou a possibilidade de emergência de um movimento abrangente que endereçasse a questão da pertinência de uma geringonça 2.0. Servirão para levantar bandeiras partidárias, e possivelmente para apaziguar a consciência de quem se revê em votos identitários. Não vislumbro que, se por hipótese que deve estar em cima da mesa, houver uma segunda volta, alguma destas candidaturas possa almejar corporizar a convergência necessária
Resta a candidatura de Ana Gomes. Ainda não é liquido qual vai ser o seu posicionamento, mas é possível antever quais as suas potencialidades. Ana Gomes tem todas as condições para montar uma campanha de tipo 3 – ir à luta com Marcelo, defender uma magistratura presidencial pautada por outros parâmetros (defesa da integralidade da Constituição, incluindo os aspectos que ainda estão por concretizar), aparecer aos olhos dos eleitores como uma alternativa realista sem que a afirmação das suas convicções fundadas no socialismo democrático entre em confronto com um posicionamento que não é condicionado por factores partidários. Uma campanha que compreenda a especificidade das eleições presidenciais e o sentido que o eleitorado exige de quem aspira a vencê-las. Uma formatação deste estilo potenciará o seu apelo junto de uma franja do eleitorado que quer votar à esquerda sem peias partidárias, e abrirá caminho a que numa possível segunda volta não seja necessário mudar de guião para sustentar um posicionamento abrangente. De facto, é na primeira volta que se lançam as bases daquilo que poderá ser um movimento de convergência. A história das eleições presidenciais em Portugal transmite com muita ênfase esta lição.
Por este conjunto de razões, esperando que a candidatura de Ana Gomes se concretize de forma mais clara, creio que está no bom caminho. Por isso – e porque uma candidatura presidencial para além de um gesto de coragem individual comporta também uma dimensão colectiva – estou com ela no respeito pelas idiossincrasias de umas eleições com um ethos muito próprio, que ela está a encarnar de forma audaz
No Comments