24 Mar Eleições Presidenciais 2021: algumas lições ignoradas
Introdução
Um mês depois das eleições presidenciais, pode eventualmente parecer estranho ao leitor do Jornal Letras que eu ainda volte ao tema. Na verdade, creio que há temas ligados a estas eleições que merecem ser mais bem escalpelizados, nomeadamente as questões do universo eleitoral, da abstenção e do voto postal, entre várias outras coisas, designadamente as ameaças e desafios que colocam às esquerdas e às direitas tradicionais os resultados fulgurantes da extrema-direita.
- O universo eleitoral, a abstenção e o voto por correspondência
Até à revisão constitucional de 1997, os emigrantes, que têm um enorme peso relativo face à população residente em território nacional, não podiam votar nas eleições presidenciais. Em 1997, por pressões reiteradas das direitas, que sempre esperaram beneficiar mais do sentido de voto dos emigrantes (tendencialmente mais conservador), e por cedências de princípio incompreensíveis por parte do PS, os emigrantes passaram a poder votar, desde que demonstrassem «laços de efetiva ligação à comunidade nacional». Porém, na Lei n.º 47/2018, referente à reforma da Lei do RE para os portugueses residentes no estrangeiro dado o novo procedimento de inscrição automática no RE, chegámos à seguinte formulação para os emigrantes: «todos os cidadãos nacionais, maiores de 17 anos, são oficiosa e automaticamente inscritos na base de dados do recenseamento eleitoral.» Resultado, entre 2016 e 2021, o universo expandiu-se desmesuradamente e perdeu-se completamente a questão da «efetiva ligação à comunidade nacional» (conceito cuja operacionalização não posso detalhar aqui, por razões de espaço).
Há um princípio chave da fundamentação normativa e doutrinária das eleições em democracia que é o seguinte: os eleitores devem ser responsáveis e, para tanto, devem experienciar as consequências das suas escolhas, coisa que os emigrantes não podem fazer pois vivem no estrangeiro. Acresce que, ao contrário da AR, onde os emigrantes têm sempre um teto na sua influência (4 deputados), nas presidenciais não têm. Portanto, os emigrantes podem vir a decidir as presidenciais e os residentes (e só eles) é que arcarão plenamente com as consequências. Acresce uma abstenção artificialmente muito elevada: entre 2016 e 2021 a abstenção aumentou de cerca de 50% para cerca de 60%, mas o total de votantes só diminui em cerca de 400 mil, uma diminuição apesar de tudo bastante razoável, tendo em conta o pico da pandemia; o problema foi os mais cerca de 1 milhão de emigrantes no RE após 2018. O novo presidente eleito já disse que gostaria de ver uma revisão das leis eleitorais a tempo das autárquicas, de modo a facilitar o voto em termos de pandemia, mas era bom que se ponderasse também o problema do direito de voto dos emigrantes nas eleições presidenciais.
- A vitória expressiva do vencedor anunciado
Conforme todas as sondagens previram, Marcelo (MRS) foi eleito à primeira volta, com cerca de 60% dos votos, tendo sido o segundo presidente reeleito com maior percentagem (a seguir a Mário Soares II). Mais, conseguiu ganhar em todos os concelhos do país, feito nunca conseguido. Para tal concorreram a sua enorme popularidade, a qual resultou, nomeadamente, de um exercício do mandato autónomo quer face aos partidos que o apoiaram formalmente (PSD e CDS-PP), quer face ao partido que liderou o governo (PS), a que acresceu a normalização plena da entrada da esquerda radical na esfera governativa, e uma presidência de grande proximidade com os portugueses. O apoio de grande parte da elite dirigente do PS (e dos eleitores socialistas que os seguiram) teve também o seu papel neste resultado.
- Os resultados dos candidatos das esquerdas e os desafios para o futuro
Apesar de não ter conseguido levar MRS a uma segunda volta, a candidata da área
Socialista, Ana Gomes (AG), conseguiu ficar à frente do candidato da oposição desleal e anti sistémica (embora apenas por cerca de 1% mais), facto que é tanto mais notável quanto AG não só não contou com o apoio do PS, o qual formalmente não apoiou nenhum candidato mas na prática a elite dirigente do partido apoiou MRS (a começar pelo primeiro ministro), como foi alvo da animosidade e do desdém de vários notáveis socialistas. Porém, como bem sublinhou o ministro Pedro Nuno Santos (PNS), Público (31-1-2021), não fosse ela ter feito esse serviço à República e à esquerda socialista e, muito provavelmente, Ventura teria ficado em segundo. Tendo em conta as diferenças político-ideológicas entre o campo socialista e o campo do centro-direita, onde MRS se inscreve, seja quanto ao papel do Estado na economia, seja em matéria de costumes e de estilos de vida, é curiosa a estratégia socialista de deixar vazio o campo de batalha. A não ser por mera tática política, ou seja, por uma governação em zigue-zague que apregoa as alianças à esquerda, mas não raro se alia com a direita (como foi o caso destas presidenciais). Tal obscurece a divisão entre a esquerda e a direita pela criação de um grande centrão indiferenciado, facto que favorece duplamente a extrema direita, seja por deslocar o eixo de competição dessa clivagem para o campo da oposição entre democratas e forças anti sistema (PNS), seja pela indiferenciação política que também alimenta o populismo.
O BE foi o partido mais penalizado nestas eleições em boa medida porque uma esmagadora maioria do seu eleitorado não entendeu a saída do partido da aliança de esquerdas na votação orçamental para 2021 (com exigências do BE para se abster que mais pareciam servir para um acordo de legislatura), e resolveu penalizar a candidata Marisa Matias (que perdeu cerca de metade da votação face a 2016). João Ferreira, que fez uma grande campanha (abrindo o PCP para fora dos seus campos tradicionais) e teve a atitude mais correta quanto à forma desejável de tratar o Chega (ostracização política e não legal), além de beneficiar da atitude construtiva do PCP e do PEV na aliança possível das esquerdas, teve um ligeiro incremento de apoio face ao candidato do PCP em anteriores presidenciais (2016), Edgar Silva. Ao contrário do que disse Boaventura Sousa Santos num excelente artigo no Público (29-1-2021), que em geral subscrevo, o problema das esquerdas não foi a falta de uma candidatura unitária, foi a falta de uma dinâmica de alianças à esquerda, para antes, durante e depois das presidenciais, seja pelo comportamento do PS, com a deserção presidencial e os frequentes piscares de olhos ao PSD (na governação e nas presidenciais), seja pelo comportamento da esquerda radical, mais recentemente sobretudo o BE. Ou seja, em presidenciais com um sistema maioritário a duas voltas, na primeira volta vota-se «com o coração» (ou «com os pés»), na segunda volta vota-se «com a cabeça» (e era para tal que a dinâmica das alianças não existia, pois nem candidato socialista oficial havia).
- O terramoto da ascensão da extrema direita
A ascensão da extrema direita (é certo que não pretende tomar o poder por meios não democráticos, logo seria direita radical, mas pretende pôr em causa elementos chave da ordem constitucional e democrática como seja, por exemplo, retirar a referência a liberdades e direitos fundamentais da Constituição, logo direita extrema) foi notável nestas presidenciais. Passou de partido estatisticamente irrelevante (com cerca de 1,5% dos votos e 1 deputado eleito) a terceiro candidato mais votado nas presidenciais (11,9% dos votos); ficou em segundo lugar em 204 concelhos; tem uma grande difusão territorial (apesar de estar mais no interior do que no litoral, mais nas zonas rurais do que nas zonas urbanas).
Claro que este resultado de Ventura não é linearmente transponível para o Chega em legislativas, seja porque aí são listas coletivas e não one-man show num único círculo uninominal, seja porque a formação do governo não estava em jogo (aí os eleitores votam mais «com a cabeça»), seja porque a eleição de MRS estava previamente anunciada (e tal estimula o voto «com o coração» e/ou «com os pés» das minorias não cooptadas), mas na verdade recomenda a prudência que «não se deve contar com os ovos no cú da galinha». As esquerdas precisam de um projeto de alianças nas políticas e para governar, um projeto com presente e futuro (que acomode a diversidade e não a destrua), uma verdadeira dinâmica de alianças à esquerda. À direita já se percebeu, pelo menos desde as regionais dos Açores em 2020, que o PSD (e o CDS-PP) poderão levar o Chega para a esfera governativa se tal for necessário para governarem e desarredarem o PS. Mas os custos para a democracia e para eles mesmo podem ser enormes. Foquemo-nos só nestes últimos tomando como exemplo Espanha: a legitimação do Vox com a entrada na esfera governativa na Andaluzia, primeiro, está associado a um crescimento posterior muito grande do Vox (primeiro para cerca de 10 deputados, depois para cerca de 50) e à sua indispensabilidade para governar (vide a Comunidade e o Município de Madrid); e no final tudo isso pode levar ao eclipse da direita tradicional tal como a conhecemos (vide os resultados no PP e do Cs nas eleições da Catalunha em 14-2-2021).
- Introdução
Um mês depois das eleições presidenciais, pode eventualmente parecer estranho ao leitor do Jornal Letras que eu ainda volte ao tema. Na verdade, creio que há temas ligados a estas eleições que merecem ser mais bem escalpelizados, nomeadamente as questões do universo eleitoral, da abstenção e do voto postal, entre várias outras coisas, designadamente as ameaças e desafios que colocam às esquerdas e às direitas tradicionais os resultados fulgurantes da extrema-direita.
- O universo eleitoral, a abstenção e o voto por correspondência
Até à revisão constitucional de 1997, os emigrantes, que têm um enorme peso relativo face à população residente em território nacional, não podiam votar nas eleições presidenciais. Em 1997, por pressões reiteradas das direitas, que sempre esperaram beneficiar mais do sentido de voto dos emigrantes (tendencialmente mais conservador), e por cedências de princípio incompreensíveis por parte do PS, os emigrantes passaram a poder votar, desde que demonstrassem «laços de efetiva ligação à comunidade nacional». Porém, na Lei n.º 47/2018, referente à reforma da Lei do RE para os portugueses residentes no estrangeiro dado o novo procedimento de inscrição automática no RE, chegámos à seguinte formulação para os emigrantes: «todos os cidadãos nacionais, maiores de 17 anos, são oficiosa e automaticamente inscritos na base de dados do recenseamento eleitoral.» Resultado, entre 2016 e 2021, o universo expandiu-se desmesuradamente e perdeu-se completamente a questão da «efetiva ligação à comunidade nacional» (conceito cuja operacionalização não posso detalhar aqui, por razões de espaço).
Há um princípio chave da fundamentação normativa e doutrinária das eleições em democracia que é o seguinte: os eleitores devem ser responsáveis e, para tanto, devem experienciar as consequências das suas escolhas, coisa que os emigrantes não podem fazer pois vivem no estrangeiro. Acresce que, ao contrário da AR, onde os emigrantes têm sempre um teto na sua influência (4 deputados), nas presidenciais não têm. Portanto, os emigrantes podem vir a decidir as presidenciais e os residentes (e só eles) é que arcarão plenamente com as consequências. Acresce uma abstenção artificialmente muito elevada: entre 2016 e 2021 a abstenção aumentou de cerca de 50% para cerca de 60%, mas o total de votantes só diminui em cerca de 400 mil, uma diminuição apesar de tudo bastante razoável, tendo em conta o pico da pandemia; o problema foi os mais cerca de 1 milhão de emigrantes no RE após 2018. O novo presidente eleito já disse que gostaria de ver uma revisão das leis eleitorais a tempo das autárquicas, de modo a facilitar o voto em termos de pandemia, mas era bom que se ponderasse também o problema do direito de voto dos emigrantes nas eleições presidenciais.
- A vitória expressiva do vencedor anunciado
Conforme todas as sondagens previram, Marcelo (MRS) foi eleito à primeira volta, com cerca de 60% dos votos, tendo sido o segundo presidente reeleito com maior percentagem (a seguir a Mário Soares II). Mais, conseguiu ganhar em todos os concelhos do país, feito nunca conseguido. Para tal concorreram a sua enorme popularidade, a qual resultou, nomeadamente, de um exercício do mandato autónomo quer face aos partidos que o apoiaram formalmente (PSD e CDS-PP), quer face ao partido que liderou o governo (PS), a que acresceu a normalização plena da entrada da esquerda radical na esfera governativa, e uma presidência de grande proximidade com os portugueses. O apoio de grande parte da elite dirigente do PS (e dos eleitores socialistas que os seguiram) teve também o seu papel neste resultado.
- Os resultados dos candidatos das esquerdas e os desafios para o futuro
Apesar de não ter conseguido levar MRS a uma segunda volta, a candidata da área
Socialista, Ana Gomes (AG), conseguiu ficar à frente do candidato da oposição desleal e anti sistémica (embora apenas por cerca de 1% mais), facto que é tanto mais notável quanto AG não só não contou com o apoio do PS, o qual formalmente não apoiou nenhum candidato mas na prática a elite dirigente do partido apoiou MRS (a começar pelo primeiro ministro), como foi alvo da animosidade e do desdém de vários notáveis socialistas. Porém, como bem sublinhou o ministro Pedro Nuno Santos (PNS), Público (31-1-2021), não fosse ela ter feito esse serviço à República e à esquerda socialista e, muito provavelmente, Ventura teria ficado em segundo. Tendo em conta as diferenças político-ideológicas entre o campo socialista e o campo do centro-direita, onde MRS se inscreve, seja quanto ao papel do Estado na economia, seja em matéria de costumes e de estilos de vida, é curiosa a estratégia socialista de deixar vazio o campo de batalha. A não ser por mera tática política, ou seja, por uma governação em zigue-zague que apregoa as alianças à esquerda, mas não raro se alia com a direita (como foi o caso destas presidenciais). Tal obscurece a divisão entre a esquerda e a direita pela criação de um grande centrão indiferenciado, facto que favorece duplamente a extrema direita, seja por deslocar o eixo de competição dessa clivagem para o campo da oposição entre democratas e forças anti sistema (PNS), seja pela indiferenciação política que também alimenta o populismo.
O BE foi o partido mais penalizado nestas eleições em boa medida porque uma esmagadora maioria do seu eleitorado não entendeu a saída do partido da aliança de esquerdas na votação orçamental para 2021 (com exigências do BE para se abster que mais pareciam servir para um acordo de legislatura), e resolveu penalizar a candidata Marisa Matias (que perdeu cerca de metade da votação face a 2016). João Ferreira, que fez uma grande campanha (abrindo o PCP para fora dos seus campos tradicionais) e teve a atitude mais correta quanto à forma desejável de tratar o Chega (ostracização política e não legal), além de beneficiar da atitude construtiva do PCP e do PEV na aliança possível das esquerdas, teve um ligeiro incremento de apoio face ao candidato do PCP em anteriores presidenciais (2016), Edgar Silva. Ao contrário do que disse Boaventura Sousa Santos num excelente artigo no Público (29-1-2021), que em geral subscrevo, o problema das esquerdas não foi a falta de uma candidatura unitária, foi a falta de uma dinâmica de alianças à esquerda, para antes, durante e depois das presidenciais, seja pelo comportamento do PS, com a deserção presidencial e os frequentes piscares de olhos ao PSD (na governação e nas presidenciais), seja pelo comportamento da esquerda radical, mais recentemente sobretudo o BE. Ou seja, em presidenciais com um sistema maioritário a duas voltas, na primeira volta vota-se «com o coração» (ou «com os pés»), na segunda volta vota-se «com a cabeça» (e era para tal que a dinâmica das alianças não existia, pois nem candidato socialista oficial havia).
- O terramoto da ascensão da extrema direita
A ascensão da extrema direita (é certo que não pretende tomar o poder por meios não democráticos, logo seria direita radical, mas pretende pôr em causa elementos chave da ordem constitucional e democrática como seja, por exemplo, retirar a referência a liberdades e direitos fundamentais da Constituição, logo direita extrema) foi notável nestas presidenciais. Passou de partido estatisticamente irrelevante (com cerca de 1,5% dos votos e 1 deputado eleito) a terceiro candidato mais votado nas presidenciais (11,9% dos votos); ficou em segundo lugar em 204 concelhos; tem uma grande difusão territorial (apesar de estar mais no interior do que no litoral, mais nas zonas rurais do que nas zonas urbanas).
Claro que este resultado de Ventura não é linearmente transponível para o Chega em legislativas, seja porque aí são listas coletivas e não one-man show num único círculo uninominal, seja porque a formação do governo não estava em jogo (aí os eleitores votam mais «com a cabeça»), seja porque a eleição de MRS estava previamente anunciada (e tal estimula o voto «com o coração» e/ou «com os pés» das minorias não cooptadas), mas na verdade recomenda a prudência que «não se deve contar com os ovos no cú da galinha». As esquerdas precisam de um projeto de alianças nas políticas e para governar, um projeto com presente e futuro (que acomode a diversidade e não a destrua), uma verdadeira dinâmica de alianças à esquerda. À direita já se percebeu, pelo menos desde as regionais dos Açores em 2020, que o PSD (e o CDS-PP) poderão levar o Chega para a esfera governativa se tal for necessário para governarem e desarredarem o PS. Mas os custos para a democracia e para eles mesmo podem ser enormes. Foquemo-nos só nestes últimos tomando como exemplo Espanha: a legitimação do Vox com a entrada na esfera governativa na Andaluzia, primeiro, está associado a um crescimento posterior muito grande do Vox (primeiro para cerca de 10 deputados, depois para cerca de 50) e à sua indispensabilidade para governar (vide a Comunidade e o Município de Madrid); e no final tudo isso pode levar ao eclipse da direita tradicional tal como a conhecemos (vide os resultados no PP e do Cs nas eleições da Catalunha em 14-2-2021).
Artigo originalmente publicado na coluna mensal do autor, «heterodoxias políticas», no Jornal de Letras, 24-2-2021 a 10-3-2021.
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