E de repente… sorrateiramente…

E de repente… sorrateiramente…

E de repente … sorrateiramente … quando todos voltavam os olhos para Bruxelas onde Mário Centeno acabava de ser eleito presidente do Eurogrupo, e fazia declarações mais ou menos anódinas como é timbre de tais ocasiões, pouco ou nada acrescentando ás cautelosas a vaguíssimas declarações anteriores, faltando-lhe desta vez o cachecol da selecção portuguesa de futebol para dar mais cor folclórica ao evento, eis que lá longe, em terras de mouros amigos, António Costa faz uma breve declaração com um programa político ambicioso para os dois anos e meio de mandato cometidos ao seu ministro das Finanças nas salas e corredores da eurocracia.

As esquerdas portuguesas que juntaram trapinhos para dar vida à “geringonça” sempre tiveram na questão da “Europa” e sobretudo no euro um grande pomo de discórdia. Felizmente, os sectores mais radicais saíram do seu posicionamento anterior de não admitir dar o benefício da dúvida aos socialistas, e a “geringonça” começou a fazer a prova dos nove às ideias de uns e de outros.

Devemos reconhecer que, num ponto, o PS teve razão: as políticas seguidas pelo governo Passos/Portas não eram totalmente condicionadas por Herr Schauble (se bem que este se sentisse confortável com elas…). PCP e BE subvalorizaram o fervor ideológico do nosso duo de governantes que queriam “ir mais além da troika” e quase aceitaram desculpabilizá-los pelas suas malfeitorias em nome de uma suposta imposição de políticas ditada do estrangeiro, tal era a sanha com que viam o degradar da situação de milhões de portugueses. Mas a verdade é que, como José Pacheco Pereira não se cansa de repetir na Quadratura do Circulo, quando os historiadores tiverem acesso a toda a documentação (se é que não foi deitada ao caixote do lixo para apagar vestígios comprometedores…) talvez se venha a conhecer o contributo altamente negativo que o posicionamento ideológico dos governantes portugueses teve no desenho do programa que foi aplicado sem dó nem piedade. A função de Mário Centeno nestes dois anos que leva de ministro foi, precisamente, a de demonstrar que, sem reescrever uma só palavra dos tratados e demais documentos balizadores, era possível uma outra política. Mais: tinha sempre sido possível uma outra interpretação dos mesmos que sustentasse uma outra política.

Quem hoje embandeira em arco pelo virar de página levado a cabo pelo actual governo deveria ter presente que a maior fatia de responsabilidade pelo desastre que se abateu sobre nós sob a forma do “programa de ajustamento estrutural” não é de quem quis aplicar uma política que beneficiava em causa própria os mais fortes dentro do euro – é de quem em Portugal foi conivente com esses interesses e quis levar a receita mais longe do que o médico receitava. Por isso não tem ponta de razão Luis Montenegro quando considera que a eleição de Mário Centeno só foi possível depois do trabalho de Vítor Gaspar e de Maria Luís Albuquerque – pelo contrário, ela só foi possível porque Centeno mostrou que havia uma alternativa a essas políticas que talvez possa por termo ao descalabro eleitoral dos partidos tradicionais que tão bem se revelou no ano que passa, da Austria à Holanda, passando pela França e pela Alemanha, com elevadíssimos níveis de votação na extrema-direita anti-europeia e em forças de esquerda desalinhadas do status quo

Se o primeiro round parece ganho por Costa e Centeno – era possível fazer diferente dentro do quadro europeu – há uma segunda questão que permanece em aberto: seria possível ter feito ainda melhor se não estivéssemos espartilhados pelas regras do Eurogrupo? Será que podemos considerar-nos satisfeitos com a reversão de políticas, com o crescimento da economia, com o baixar do desemprego, com a redução da precariedade, mesmo com o baixar da dívida publica – tudo ainda demasiado tímido e de sustentação não consolidada? Por outras palavras: não teremos nós a obrigação de questionar as regras europeias que, mesmo admitindo alguma folga que foi bem explorada por Centeno, são um espartilho ao crescimento e à convergência de que necessitamos como de pão para a boca?

Ora, neste domínio, as declarações de António Costa em Rabat – vinda na sequência de uma intervenção sua no Colégio da Europa em Bruges semanas antes das eleições alemãs – vem dar um principio de resposta: sim, é necessário dar um passo que tenha como objectivo reequacionar a moeda comum como um instrumento de crescimento e de convergência que manifestamente não tem sido. E isso passa por reformas sérias – mas que Costa crê serem possíveis

Ouvem-se, à esquerda da esquerda, vozes clamando que se trata de uma perigosa ilusão, sendo que a solução é o corte cerce. Não estou seguro de que lhes assista razão, e estou na disposição de dar a Costa e Centeno o beneficio da duvida – mais uma vez, e de novo sub conditione.

Estou farto de ler e ouvir que este governo não tem uma agenda de reformas. Há quem venha com a canga das “reformas estruturais”, como se estas tivessem necessariamente de ter o selo neo-liberal. Que reforma mais estrutural do sector da saúde foi levada a cabo em Portugal senão a criação do Serviço Nacional de Saúde, tão longe dos cânticos neoliberais? Que reforma mais estrutural do sector científico foi levada a cabo em Portugal senão a de Mariano Gago – sem qualquer suspeita de neo-liberalismo? E por aí adiante… Há amplo campo para se entender a pulsão reformadora num outro sentido, mais consentâneo com os valores próprios da esquerda progressista e solidária – e este governo tem dado sinais de estar atento, se bem que por vezes (falo por experiência própria: no campo da ciência anda demasiado baralhado a desfazer o imbroglio criado por Nuno Crato) sem o élan que se desejaria. Talvez agora estejamos mesmo perante uma tentativa reformadora de largo espectro.

O que me perturba na diferença entre as palavras de Mário Centeno em Bruxelas e as de António Costa em Rabat é a clareza de um e a língua de pau do outro. Não tenho ilusões de que o processo de reforma do euro terá de ser negociado com subtileza, e muito do trabalho decorrerá nos bastidores. Não é uma reforma a fazer na praça publica. Mas dito isto, não pode ser uma frente de batalha em que a esperança de vencer se desvanece porque uns jogam com a sua opinião pública (como o caso da Alemanha, que tem sempre o cuidado de ter posições públicas muito bem definidas), e outros a desprezam. António Costa deveria perceber que, para que a sua estratégia tenha chances de sucesso, é necessário não só assegurar o bom funcionamento dos canais discretos – e sobretudo articular uma posição que seja comum aos países que sofrem com o status quo, e não são poucos!… – mas também precisa de mobilizar os portugueses para a reforma do euro. Não se pode limitar a umas tiradas fortes quando está fora do país – tem de deixar transparecer o peso de uma mobilização que ainda não se percebeu bem se deseja ou não. O que passa por dizer ao que vem, e que soluções tem na manga, em vez de se contentar com o enunciado de objectivos. Esses podem não passar de pias intenções, e há muito quem, no espaço público, esteja em condições de travar um debate sério sobre a tão desejada reforma do Euro.

 

Rui Graça Feijó
ruifeijo@gmail.com

Desde que acompanhei os pais a um comício da CDE nas eleições de 1969, com 15 anos de idade, tenho deambulado pelas esquerdas (Pró-associação dos liceus do Porto, LCI, UEDS, MASP I e II, Clube da Esquerda Liberal, PS - de que fui vereador na CMPorto com o Fernando Gomes - campanhas presidenciais de Jorge Sampaio, Manuel Alegre - infelizmente só a segunda, que estava em Timor em 2005 como adjunto do Xanana - e António Sampaio da Nóvoa, e ainda MIC/Porto, CDA, Movimento 3D, Tempo de Avançar, Forum Manifesto. Um verdadeiro peregrino! Agora regresso aos tempos de vida no campo (em criança e em adulto) e olho pasmado para a Vaca Voadora. Ah! E sou historiados/investigador em ciências sociais e políticas, com uma recente agregação em "Democracia no Século XXI"" (FEUC/CES)

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