
03 Jun E agora, José ?
Lembrei-me da pintura do Andy Warhol que encima este post como me poderia ter lembrado de Walt Disney e o seu Tio Patinhas a nadar na torre onde guarda as moedas quando chegou à arena publica a proposta da Comissão Europeia que prevê a disponibilização aos 27 de muito (mas mesmo muito) dinheiro para os próximos anos, dos quais Portugal poderá receber uma quantia muito significativa. Bem sei: ainda se trata apenas de uma proposta (se bem que respaldada pela Alemanha e a França, e tenha o apoio entusiástico da Itália e da Espanha – e com isto estão faladas as 4 maiores economias nacionais da UE). Ainda há muitas arestas a limar. Os montantes não são definitivos (louvo-me no entanto nos números avançados pela Elisa Ferreira numa entrevista ao Expresso: mais de 45 mil milhões a fundo perdido mais a possibilidade de outros 10 mil e tal milhões de empréstimos – a juros mais baixos do que os conseguidos pela República Portuguesa). Dinheiro que pode começar a chegar este ano, e terá um horizonte de aplicação de poucos anos, em articulação com o proximo Quadro Comunitário. Abrem-se novas perspectivas: podemos estar perante um “envelope” comparável ao que Portugal teve quando aderiu à então CEE. Diz-se que entre 1986 e 2013 Portugal terá recebido quase 100 mil milhões (que deveriam ser corrigidos pela inflação). Agora, para um espaço temporal bem mais curto, estamos a falar de quase metade desse montante em termos nominais Há – é certo – diferenças: desde logo, quem está à frente da Comissão não é Jacques Delors, um social-democrata amigo de Mitterrand e Kohl, mas uma política do centro-direita. Muita água correu debaixo das pontes, e hoje há visões distintas em Bruxelas. Depois, estamos enquadrados pela moeda única com o seu cortejo de imperfeições que distorcem a performance de muitos países, e por regulamentos – quantos deles de duvidosa legitimidade democrática – que visam restringir a autonomia política dos estados-membros e impôr um figurino ideológico ancorado à direita. Tudo isto é verdade, e merece ser ponderado no sentido de deitar água na fervura do entusiasmo que vai grassando: teremos ainda muita discussão a fazer com Bruxelas sobre a aplicação de tais verbas. Mas é um desafio melhor do que não ter a chatice de ter de lutar por aquilo em que acreditamos. Talvez a Elisa Ferreira seja optimista, ou queira falar uma linguagem que não levante ondas quando prefere a designação de “prioridades” àqueloutra de “condições”. Seja: o fundo da questão é que a soberania sobre os tais fundos é, pelo menos, partilhada. Já o foi no passado. Assim continuará – e o que devemos é ter o engenho de avançar com propostas que materializem as nossas opções.
Cavaco Silva foi o rosto português da primeira vaga de apoios comunitários. Foram eles que lhe permitiram as políticas publicas em que alicerçou duas maiorias absolutas. Em termos corriqueiros: tinha dinheiro para gastar, e gastou. Como dizia Bill Clinton nas presidenciais em que enfrentou Bush pai, “it’s the economy, stupid!”. A correlação entre desempenho económico e resultados eleitorais não é uma lei de ferro, mas resiste a muita provação. Quer isto dizer: António Costa prepara-se para dispor de condições muito (mas muito!) favoráveis para estender no tempo a sua estadia em São Bento. Os bolsos do governo estarão bem recheados nos próximos tempos. Hábil como é, irá fazer uso de uma estratégia “clientelar” para satisfazer muitos apetites sectoriais (não, isto não é “decisão política” na alocação de fundos – isso é outra coisa, como irei tentar mostrar – mas também pode não ser corrupção). Mas inteligente como também é não poderá deixar de recordar o poema de Carlos Drummond de Andrade que dá titulo a este post, e que termina assim: você marcha, José / José, para onde ? Como em tudo na vida, António Costa tem alternativas e vai ter de fazer opções. Em termos simples, pode optar por ser uma versão aggiornata do cavaquismo, tal como foi corrigido por Guterres (e aí o centrão espreita a sua oportunidade, com Marcelo à janela), ou pode querer inventar um modelo novo, mobilizando a esquerda que o tem sustentado desde 2015, mantendo o registo de vaca voadora, agora com mais margem de manobra. O que for decidido nos primeiros tempos irá formatar o quadro que irá desenvolver-se ao longo dos próximos anos. O volume de dinheiro que está à espreita é demasiado grande para se compadecer com “fazer o costume”. É por isso que seria útil que a esquerda parlamentar aproveitasse a conjuntura que lhe é favorável para entendimentos de médio prazo. Para que, mesmo que a geringonça não regresse sob forma de acordos escritos, a vaca continue a ter asas e a voar. Oxalá António Costa prefira ficar nos anais da História como alguém que soube inovar, e não tanto como quem serviu uma refeição requentada. Obviamente, não é só António Costa que vai fazer escolhas – e são precisos (por enquanto!….) parceiros para a dança
É vasto o leque de questões que poderão estruturar um pensamento de esquerda / das esquerdas com vista a transformar o desafio numa oportunidade. Ninguém o conseguirá fazer sozinho – nem individualmente, nem enquanto organização social relevante. Creio, no entanto, que – em contraste com os anos de 1980 – a palavra-chave não deveria ser “atraso”, mas “desigualdade”. É gritante que Portugal continue a ser um dos países com graus mais elevados de desigualdade dentro da UE, e o combate a esse flagelo deveria ser o eixo estruturante das políticas publicas alavancadas nos fundos comunitários. É a imagem do país que somos e queremos ser que deve orientar os esforços de intervenção publica, não uma espécie de penso rápido sobre as mazelas que se deixam subsistir. Estamos perante um desafio que é o de transcender a resposta pontual aos efeitos da crise da Covid-19 e encarar a necessidade de dar um salto qualitativo para um futuro melhor. Esse objectivo contempla, desde logo, políticas sectoriais para elevar o nível de qualificação e formação de todos os recursos humanos para uma economia mais inteligente, começando no alargamento do sistema de ensino (temos grande margem de progressão para chegarmos à média da UE), no reforço do sistema nacional de ciência e tecnologia e no alargamento do âmbito das políticas culturais. O “capital humano” é o bem mais precioso que possuímos, e a prioridade das prioridades só pode ser o de tudo fazermos para o elevar significativamente. Contempla reforçar estruturalmente o Serviço Nacional de Saúde, que deu boas provas e mostrou como pode e deve crescer para um patamar superior. Contempla dar prioridade a investimentos públicos que salientem o papel do transporte colectivo (comboios, redes de metro, descarbonização dos autocarros, etc) em detrimento do esforço anterior que se centrou no transporte privado (vide a rede extensíssima de auto-estradas). Contempla erradicar a precariedade nas relações laborais, tanto através de regulamentação directa, quer, por exemplo, através da imposição de condicionantes ao acesso a fundos públicos (já que nos falam de “condicionantes” para acedermos aos fundos europeus, porque não condicionar também a nível interno o acesso a esses mesmos fundos à adopção de praticas correctivas de situações anómalas?). Contempla olhar para as profundas assimetrias que fragmentam o tecido regional nacional e avançar com propostas decididas de reorganização do território. Contempla uma redefinição das fronteiras entre a preservação ambiental e a exploração económica de recursos, tanto na agricultura como na industria, por forma a assegurarmos níveis confortáveis de sustentabilidade. Contempla… Enfim, é um país mais decente, no seu sentido amplo, aquele que queremos construir, não apenas um país com maior nível de desempenho económico medido em exportações, actividade turística e outros indicadores de performance económica pura e dura. Se a expressão não tivesse sido tomada de assalto pela direita feroz, diria que um programa de “reformas estruturais” (no sentido em que o estabelecimento do SNS na década de 1970 o foi, ou a criação do sistema de ciência e tecnologia por Mariano Gago também assim pode ser considerado) era aquilo por que nos deveríamos bater. Para que as promessas que temos feito a nós próprios, à semelhança das promessas de Ano Novo, não fiquem no rol das boas intenções.
Muito se tem escrito sobre a aparente “conversão” de velhos (e novos) liberais a teses estatistas. Creio que é fogo de vista, e não tem sustentação: o que se tem visto muito boa gente fazer é pedir uma intervenção publica que sociabilize custos e perdas, e que mantenha intacta a possibilidade de regresso ao “dantes é que era bom” da privatização de lucros. A mudança, para além da adaptação à conjuntura altamente desfavorável, é curta. Exige-se que não se caia no canto dessas sereias que vão aparecendo, e o papel do Estado seja perfeitamente definido, incentivando e apoiando iniciativas de foro privado (venham elas como parceiras do desenvolvimento!), mantendo um espaço de intervenção próprio. A TAP é um caso paradigmático do modo como o Estado se irá posicionar em relação à iniciativa privada em sectores críticos. A CP, eventualmente, outro caso semelhante. Há quem clame por uma abordagem centrista na qual o papel do Estado seria de segunda linha mesmo tendo em conta a magnitude da crise que a pandemia provocou. Não é de somenos insistir na dimensão desta crise, e no volume de recursos financeiros que vão ser necessários para a ultrapassar e que parece fugir ao sector privado. A requalificação das estruturas do Estado português num sentido de as dotar de maior capacidade de resposta deve ser inscrita sem qualquer hesitação na lista de políticas publicas nos próximos anos. No fim deste ciclo, ou teremos um Estado mais forte, mais inclusivo e com melhores níveis de prestação (não necessariamente mais pesado!) , ou choraremos mais uma oportunidade perdida. A fragilidade do nosso tecido económico privado exige que o próprio Estado se dote de condições para assegurar as funções que Adam Smith lhe atribuía – e as que a evolução social dos últimos séculos inscreveu na sua matriz moderna antes da sanha neoliberal desencadeada por Reagan e Thatcher ter tentado desandar a roda da História.
Se aceitarmos colocar a questão da desigualdade no centro das nossas preocupações, e desenharmos um modelo de aproveitamento dos recursos que irão estar disponíveis por forma a minorar os seus impactos, estaremos a ter uma perspectiva que engloba a economia – e os seus suportes institucionais, a começar pelas pastas governamentais que os tutelam – dentro de um quadro amplo. Não será o Ministro da Economia, nem com a ajuda dos das Finanças, do Ambiente, ou qualquer outro que conseguirão tirar um coelho da cartola e desenhar um programa transversal adequado às necessidades do presente. É necessário um envolvimento global de todo o governo, e de todos os orgãos de soberania, com especial relevo para o parlamento. É esta visão humanista que não se resume à economia em sentido estrito mas postula a necessidade de actuar num plano social amplo e ambicioso que vos proponho
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