Dies irae

Dies irae

Há  quem ainda não se tenha dado conta do que aí vem,  depois de uns quantos milhões de americanos terem metido a cabeça na guilhotina e ficado à mercê dos seus carrascos. Alguns vão repetindo, e sei do que falo,  aquela frase batida,  é a democracia a funcionar. De facto é, mas os compêndios de história também estão cheios de relatos da democracia a funcionar para o lado mais negro da história.  Apesar das notícias que vão chegando, reina nalguns círculos mais distraídos, é o mais benévolo que se pode afirmar, a percepção de que os acontecimentos que por estes dias se estão a desenrolar nos EUA não passam de umas manifestações de mau gosto mas que na devida altura a vida vai retomar as suas rotinas, mais solavanco menos solavanco. E no entanto, pela voz de quem sabe do que está dizer, The Economist, o mundo tal como o conhecíamos está prestes a desaparecer. É como se estivéssemos a assistir a um remake da separação dos continentes, cada um para seu lado, para as suas fronteiras, para os seus oceanos e para os seus egoísmos. Por alguma razão vem-me à memória, nesta altura, aquele poema de Brecht – amigos, gostaria que soubésseis a Verdade e a dissésseis!/Não como cansados Césares fugitivos: amanhã vem farinha!/Mas como Lenine: amanhã à noitinha/Estamos perdidos, se não…

Para ter acontecido o que aconteceu do outro lado do Atlântico é porque o lado negro da globalização não foi prevenido a tempo, foi deixado á solta, cavando abismos e ódios entre os que dela usufruíram e os que com ela foram sendo deixados para trás. É essa a lição mais importante que se deve tirar daquele fenómeno. São muitos os exemplos que os de baixo, no desespero da sua irrelevância social, se mostrem disponíveis para a mudança, é da natureza da sua condição colectiva, mesmo que o sentido da mudança se venha a virar contra eles, considerando que as suas vidas têm o horizonte temporal do dia seguinte. Foi o que aconteceu por lá e é o que com muita probabilidade pode vir a acontecer  por cá, na Europa. Trata-se do regresso ao pagamento de portagens sempre que se quiser atravessar as fronteiras, o fim  da via verde europeia se, já nalgumas contagens finais, não forem tomadas medidas extremas para conter a ameaça que ronda os europeus. Politicamente, significa que é dever de todos equacionarem um sistema de alianças que faça frente e derrote os filofascismos que por aí já andam a bate à porta.

É por isso que, na ordem das prioridades, e nesta conjuntura, a situação espanhola tem de ser acompanhada com outro sentido político, é obrigatório defender o governo grego, assim como não se deve baixar a guarda e reforçar a  solução política encontrada em Portugal. Porque se tudo correr mal na Holanda e em França vai ser necessário que uns quantos continuem a defender a União Europeia, sob pena de irmos ter pela frente dias particularmente perigosos. A não ser que se escolha o mal maior, contando que desta vez é que é.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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