
19 Abr Diário dos Bem Lembrados dias
Quando há anos tive de escolher entre a Quinta das Patinhas e os Bem Lembrados, o grilo que me acompanha sempre nestes transes, sussurrou-me ao ouvido vai “pelos Bem Lembrados, um dia há-de servir-te para compores um título a propósito do que ainda está para vir. E assim foi. Fui pelos Bem Lembrados. Eis , pois, chagada a ocasião de escrever este breve diário destes dias.
DIÁRIO DOS BEM LEMBRADOS DIAS
Ainda não será hoje, mas amanhã, logo que a porta se abrir
para deixar entrar as vozes que passarem lá fora, umas
ainda sem saber o que dizer, iremos ter aquela conversa que ficou
interrompida pela chegada do silêncio. Ainda não se conhecia
a sua altura nem o peso que transportava às costas, tal era a máscara
de aflição que provocava sempre que se detinha para nunca mais
partir. Foram dias assim: o rosto voltado para dentro à espera
que à hora certa regressasse o momento em que pudesse, por fim,
abrir os braços e deixar-se escorregar para dentro da penumbra
da casa. Foi por isso que a história desses dias ficou por ali, quase
inútil, tão breves foram as palavras que trocaram.
A princípio não passava de uma daquelas visões quando se abrem os olhos
pela manhã. A luz ilumina a cabeça de June mas ainda não faz sentir
a sua passagem pelo corpo estendido no chão. É ali que encontra o abrigo
que todos os dias é obrigada a procurar, salvo se alguém tiver dado
pela sua ausência. Depois, chegam as notícias de que foi encontrada uma mulher
sentada num banco de jardim esquecida nos seus pensamentos,
que não são tantos, são os que precisa para continuar a ler
uma passagem da Odisseia. June diz que não se quer enganar no dia
em que deverá partir, por isso traz sempre consigo um lenço atado à cintura
e na mão direita a luva que encontrara entre os despojos da sua vida.
A esta hora quem ficou já não tem tempo para se encontrar
com a noite. Já leva horas de cumprir o seu horário e ainda falta chegar
a tempo de se fazer anunciar do outro lado do mundo. Por ora
fecham-se os olhos e cruzam-se as mãos, tanta é a leveza
do que o ouvido se dá conta, vindo do lado onde há quem esteja
à escuta dos ruídos que a casa desperta, na esperança de que a oiçam
e lhe ponham a mão sobre os cabelos, num sinal de que ainda há tempo
para deixar uma carta de despedida. Se for assim, então vale a pena
dar mais um passo para ficar próximo do rosto da mãe.
Uma das vezes fez-se à estrada e quando parou para ver
O voo dos flamingos deu por si no fim do caminho. A partir dali havia um mar,
a linha do horizonte, mas nada que se parecesse com o areal
que muitos anos antes deixara cheio de vozes. Já não fazia parte das memórias
onde se demorava nas madrugadas, aguardando que os olhos se cerrassem
para, por fim, adormecer. Foi assim que se criou a lenda do homem
que vinha dormir na areia, porque nela encontrava o sossego
impossível em nenhum outro lugar lhe.
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