Diário dos Bem Lembrados dias

Diário dos Bem Lembrados dias

Quando há anos tive de escolher entre a Quinta das Patinhas e os Bem Lembrados, o grilo que me acompanha sempre nestes transes, sussurrou-me ao ouvido vai “pelos Bem Lembrados, um dia há-de servir-te para compores um título a propósito do que ainda está para vir. E assim foi. Fui pelos Bem Lembrados. Eis , pois, chagada a ocasião de escrever este breve diário destes dias.

 

DIÁRIO DOS BEM LEMBRADOS DIAS

 

Ainda não será hoje, mas amanhã, logo que a porta se abrir

para deixar entrar as vozes que passarem lá fora, umas

ainda sem saber o que dizer, iremos ter aquela conversa que ficou

interrompida pela chegada do silêncio. Ainda não se conhecia

a sua altura nem o peso que transportava às costas, tal era a máscara

de aflição que provocava sempre que se detinha para nunca mais

partir. Foram dias assim: o rosto voltado para dentro à espera

que à hora certa regressasse o momento em que pudesse, por fim,

abrir os braços e deixar-se escorregar para dentro da penumbra

da casa. Foi por isso que a história desses dias ficou por ali, quase

inútil, tão breves foram as palavras que trocaram.

 

A princípio não passava de uma daquelas visões quando se abrem os olhos

pela manhã. A luz ilumina a cabeça de June mas ainda não faz sentir

a sua passagem pelo corpo estendido no chão. É ali que encontra o abrigo

que todos os dias é obrigada a procurar, salvo se alguém tiver dado

pela sua ausência. Depois, chegam as notícias de que foi encontrada uma mulher

sentada num banco de jardim esquecida nos seus pensamentos,

que não são tantos, são os que precisa para continuar a ler

uma passagem da Odisseia. June diz que não se quer enganar no dia

em que deverá partir, por isso traz sempre consigo um lenço atado à cintura

e na mão direita a luva que encontrara entre os despojos da sua vida.

 

A esta hora quem ficou já não tem tempo para se encontrar

com a noite. Já leva horas de cumprir o seu horário e ainda falta chegar

a tempo de se fazer anunciar do outro lado do mundo. Por ora

fecham-se os olhos e cruzam-se as mãos, tanta é a leveza

do que o ouvido se dá conta, vindo do lado onde há quem esteja

à escuta dos ruídos que a casa desperta, na esperança de que a oiçam

e lhe ponham a mão sobre os cabelos, num sinal de que ainda há tempo

para deixar uma carta de despedida. Se for assim, então vale a pena

dar mais um passo para ficar próximo do rosto da mãe.

 

Uma das vezes fez-se à estrada e quando parou para ver

O voo dos flamingos deu por si no fim do caminho. A partir dali havia um mar,

a linha do horizonte, mas nada que se parecesse com o areal

que muitos anos antes deixara cheio de vozes. Já não fazia parte das memórias

onde se demorava nas madrugadas, aguardando que os olhos se cerrassem

para, por fim, adormecer. Foi assim que se criou a lenda do homem

que vinha dormir na areia, porque nela encontrava o sossego

impossível em nenhum outro lugar lhe.

 

 

 

 

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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