Desta vez não será como em 1990

Desta vez não será como em 1990

Como qualquer mortal, o senhor Barreto tem direito à asneira e a simplificar o que é complexo. Na sua crónica domingueira, meteu-se desta vez pelo estreito caminho de divagar sobre o SNS. Argumentando com um conjunto de indicadores, habitantes/médico, remunerações dos médicos, despesa per capita, % do PIB na saúde, volume de consultas, volume de urgências, e por aí fora, concluindo que “Sem a estupidez do fanatismo político, a saúde e o Serviço Nacional de Saúde poderiam ser a mais formidável realização da democracia portuguesa”.

Portanto, o grande obstáculo aos erros políticos acumulados no sector da saúde nestes últimos vinte anos seria o fanatismo de uns quantos extremistas que andam a activar incêndios por tudo quanto é hospital e centro de saúde, com greves para aqui a para ali, e a exaltar a consciência dos portugueses. Não é a sistemática ausência de política de saúde, não é o histórico subfinanciamento, não é a promiscuidade entre o público e o privado, não é a falta de vontade política para incluir o que está a fazer falta, não é o comando central das instituições de saúde, não é a insistência no modelo biomédico (não se confunda com biomedicina), não é a completa ausência de participação das comunidades.

Na sua qualidade de sociólogo, o senhor Barreto tinha a obrigação de saber que antes de ser um sistema de prestação de cuidados de saúde, o SNS é um sistema social e será sempre um assunto político, de tal maneira que levou à queda de um governo quando a designada lei Arnaut foi aprovada na AR. Que em 1990, onze anos depois, foi substituída pela actual Lei de Bases da Saúde para abrir as portas à situação que actualmente vivemos, cujos principais beneficiários são os grandes empresários do sector. É essa a razão por que a discussão, não estando incendiada, será sempre dura e convicta.

Há os que não queriam ouvir falar, sequer, da revisão da actual lei, há os que aspiram a que o SNS se transforme numa grande ADSE, há os querem jogar em todos os tabuleiros, há os que tanto lhes faz, mas há também, e serão a maioria, os que têm a expectativa de que a Lei de Bases que vier a ser aprovada na AR desate os principais nós que estão a impedir  o SNS de cumprir integralmente a missão para que foi criado. É por essa razão que, pela primeira vez, o debate sobre o rumo da política de saúde está na rua. Que está a ser discutido tanto na universidade como no Órfeão do Porto, no auditório do Montepio como hospital de S. Teotónio, na Cantina Velha como em Beja, nas redes sociais como nos jornais.Desta vez não será como foi em 1990.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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