13 Fev Democracias Impopulares e Vagas Populistas
- Introdução
Neste mês de janeiro de 2021, Donald Trump cedeu a presidência dos EUA a Joe Biden (dia 20), embora contestando os resultados por alegadas fraudes eleitorais e incentivando inauditos ataques de massas trumpistas ao Capitólio (dia 6), que redundaram em pelo menos 5 mortos, muitos feridos e muitos estragos, também reputacionais. Porém, conforme validação por todas as entidades responsáveis, Trump perdeu claramente no voto popular (cerca de 81 milhões de votantes e 51,4% do total, de Biden, contra 74 milhões e 46,9%, de Trump) e no colégio eleitoral (306 contra 232, vitória a partir de 270 votos no colégio) para Biden; e os Democratas controlam agora as duas câmaras do Congresso. Neste contexto, o livro de Yves Mény, que nos ocupa no presente texto, Democracias Imperfeitas. Frustrações Populares e Vagas Populistas, Imprensa de Ciências Sociais, 2020, é especialmente oportuno. É verdade que a derrota do primeiro presidente verdadeiramente populista na história dos EUA (a pátria do populismo no século XIX, junto com a Rússia) retira à galáxia populista ao nível mundial um elemento fundamental. Todavia, por um lado, a votação de Trump foi notável, pelo que ele (ou seus sucedâneos) continuará provavelmente a andar por aí… Por outro lado, os movimentos populistas na Europa e no mundo contemporâneo antecedem, e muito, Trump, e com certeza que lhe sobreviverão. Portanto, entender a natureza dos movimentos e partidos populistas, bem como a sua força e influência, continua a ser um objetivo primordial nas sociedades atuais. E essa poderia ser uma primeira ordem de razões para ler este livro. Além disso, o estudo de Yves Mény vai muito além das questões de conceptualização e análise contemporânea do populismo presente em dois livros sobre o tema que recenseámos no JL no final de 2019 (um de Cas Mudde e de Cristobal Rovira Kaltwasser e outro de Chantal Mouffe, ambos editados pela Gradiva, 2017 e 2019). E essa é outra razão que lhe confere especial relevância: com uma interessantíssima análise histórica em profundidade, o livro liga explicitamente a ascensão contemporânea dos movimentos e partidos populistas à crise atual das democracias, escalpelizando tais fatores de crise e elucidando-nos sobre a forma como essa crise e as suas traves mestras se ligam à ascensão recente dos populismos.
Yves Mény é um politólogo francês de projeção internacional, tendo sido nomeadamente presidente do prestigiadíssimo Instituto Universitário Europeu (Florença), além de ter ensinado nas Universidades de Rennes, Paris II; Science Po, entre muitas outras. Além da introdução e da conclusão, o livro tem ainda sete outros capítulos. Não podemos, por motivos de espaço, analisar aqui todos os vários elementos de tão rica e densa obra, focaremos por isso apenas alguns aspetos que nos parecem fundamentais.
- O povo, a nação e as democracias imperfeitas
Os estudos científicos sobre o populismo apontam como uma das suas características fundamentais o apelo ao povo, geralmente numa narrativa que coloca os populistas como os genuínos representantes do povo, um povo amiúde descrito como puro e não corrompido, homogéneo, por oposição às elites, corruptas, degeneradas e que não representam efetivamente o povo (ver o livro citado de Cas Mudde e de Cristobal Rovira Kaltwasser, 2017). É verdade que visões progressistas e politicamente engajadas, que tentam reabilitar o conceito de populismo pela esquerda, apresentam a ideia de povo como uma estratégia narrativa para estruturar a ação política com vista a articular e agregar os vários estratos e classes sociais, estruturalmente heterogéneos, numa entidade apenas simbólica e conceptualmente una, unificada pelo estatuto de dominado no sistema capitalista de dominação daqueles vários estratos e classes (ver o livro de Chantal Mouffe, 2019).
Seja como for, o apelo ao povo, à soberania popular, ou à soberania nacional, é um elemento estrutural das democracias desde a rutura demoliberal consubstanciada nas revoluções americana (1776) e francesa (1789) e nas suas implicações e consequências para a governação liberal e democrática no mundo, desde então, como bem evidencia, documenta e problematiza o livro de Yves Mény. A democracia direta da Grécia clássica trouxe a ideia de autogoverno em unidades políticas de pequena dimensão e reduzida heterogeneidade, ideia depois repescada por outros experimentos como as repúblicas italianas na idade média e no renascimento. Em todas elas, porém, o povo legal (a cidadania) era muito mais restrito do que o povo real (que incluía muitas pessoas excluídas da cidadania: os escravos, as mulheres, etc.). Os regimes que sucederam às revoluções americana e francesa recuperaram a ideia de autogoverno, mas, dada a elevada dimensão e heterogeneidade das unidades políticas, introduzem a grande inovação do governo representativo e da moderação do poder da maioria (o povo em toda a sua extensão), ou seja, a máxima liberal do governo limitado através do sistema de pesos e contrapesos. Mas o apelo à soberania popular, ao povo, ou à soberania nacional, é algo que é estrutural e perene nos novos regimes demoliberais. Ou seja, à ficção de uma soberania unificada na figura do monarca era preciso contrapor outra ideia de uma soberania una e indivisível, a soberania popular/nacional. Portanto, o apelo ao povo, à soberania popular, é uma pulsão inerentemente democrática do populismo. Todavia, a história da construção democrática é, também e conforme documenta abundantemente Yves Mény, a história das lutas por fazer coincidir na maior extensão possível o povo legal como o povo real, nomeadamente através das lutas pela expansão do direito de voto (pelo fim do sufrágio limitado aos mais ricos, aos mais instruídos, aos homens, aos mais velhos; pelo fim das eleições indiretas; etc., etc.) e por uma melhor representatividade dos sistemas políticos através nomeadamente dos sistemas proporcionais e das limitações à engenharia eleitoral. Ou seja, a crise das democracias, a sua impopularidade, a sua imperfeição e o seu contínuo aperfeiçoamento, são elementos estruturais, consubstanciais e de longa data nos regimes demoliberais. As boas notícias, segundo Yves Mény, são basicamente duas: a crise das democracias não é de hoje e o contínuo aperfeiçoamento das mesmas dá-nos uma nota de esperança de superação da crise atual.
- Os fatores de crise democrática por detrás das recentes vagas populistas
Outro dos atrativos do livro de Yves Mény é o de fornecer uma análise exaustiva e com grande profundidade histórica das causas das sucessivas vagas populistas, nomeadamente da mais recente. O politólogo francês aponta quatro grandes vetores causais como mais relevantes. Primeiro, o crescimento do número e do poder das autoridades não eleitas que levaram a um crescente recuo do poder das elites com pedigree democrático, e a transformação associada dos sistemas políticos com a passagem da governação (centralidade das autoridades políticas) à governança (perda da dita centralidade). Embora com raízes bastante mais recuadas, associadas às necessidades de modernização política, o grande crescimento do poder das autoridades tecnocráticas dá-se sobretudo com a europeização e o neoliberalismo (bancos centrais, autoridades de regulação, comissão europeia e afins, etc.), e tem sido «uma besta negra» das forças populistas, à esquerda e à direita. Segundo, o crescente desequilíbrio da componente liberal da democracia (com os seus pontos de veto face ao poder a maioria), em crescendo, face à componente propriamente democrática da democracia (o poder dos cidadãos nos processos de tomada de decisão), em recuo, são também um alvo preferencial dos populistas. Terceiro e quarto, a globalização e a europeização, e a convergência das grandes forças políticas com a nova doxa neoliberal que lhes está associada, com o crescimento do poder dos grandes interesses económicos e das autoridades tecnocráticas, com pouco ou nenhum pedigree democrático, face às autoridades eleitas e retirando poder aos cidadãos na escolha e determinação das políticas públicas, são outras bestas negras das vagas populistas mais recentes. Um diagnóstico lúcido, preciso e claro, com o qual não poderíamos estar mais de acordo.
Os problemas dos populismos, sobretudo os de pendor direitista radical, não são propriamente os diagnósticos da crise democrática que fazem, que são amiúde pertinentes, é o tipo de repostas que propõem. Nomeadamente, porque «o povo populista exclui as elites e os estrangeiros, a nação exclui a europeização ou a globalização, a igualdade ou a liberdade são valores para os nacionais, a nacionalidade é um bem demasiado precioso para ser concedido aos “alógenos”, a solidariedade só se aplica aos concidadãos… (p. 177).» Todavia, Mény acredita que a pressão populista, ainda que com um eventual elevado preço a pagar…, poderá ter um efeito de pressão positivo para a renovação das democracias e das elites e, sobretudo, para uma reconciliação da democracia não apenas com o nível nacional, mas também e sobretudo com o nível supranacional.
Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas», quinzena de 27 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2021.
Fonte da imagem: Forum on European Culture, 17-20 setembro de 2020, via gogle images.
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