23 Mai COVID19, China e alter-globalização
- A Pandemia da COVID-19 e a síndroma da «nova peste»
A atual pandemia, COVID-19 (Corona Virus Disease 2019), resulta da patogenicidade do vírus SARS-CoV2 (Severe Acute Respiratory Syndrome – Corona Virus 2) pertencente à família dos corona da qual já nos eram familiares a SARS-CoV1 (2002-2003) e a MERS – Middle East Respiratory Syndrome (2015-2018) (G. Lippi e M. Plebani; «The critical role of laboratory medicine during corona virus disease 2019 and other viral outbreak»s, Clin Chem Lab Med 2020). Outros vírus aparentados (influenza), e que já causaram problemas graves também a nível mundial, foram a Gripe das Aves, H5N1,2003-2010, e a Gripe Suína, H1N1-H1N3, 2009. A gravidade da COVID-19 está relacionada com o seu o seu longo período de incubação e a permanência ativa da carga viral (duas semanas), o que per se aumenta exponencialmente as possibilidades de contágio. Assim, ficam sob pressão potencialmente ingerível os SNS porque se gera um elevado número de pessoas que, num curto espaço de tempo, precisam de recorrer a eles, e, nos casos mais graves, ao suporte dos cuidados intensivos. Como não há ainda vacina, a única forma de combater o seu elevado contágio é o distanciamento social, e daí os confinamentos, as quarentenas, os cordões sanitários. Em tempos próximos já tinham existido outras pandemias, mas nenhuma outra produziu os efeitos a que estamos a assistir: países em confinamento generalizado, vários sectores económicos paralisados, adoção do estado de emergência em várias nações. Espera-se, portanto, uma forte recessão económica subsequente ao nível mundial.
Nas sociedades industriais avançadas em que vivemos na Europa, na América do Norte, etc., a presente pandemia veio abalar a nossa confiança numa suposta segurança ontológica conferida pelo progresso cientifico e tecnológico, que nos fazia de algum modo sentir a salvo deste tipo de efeitos (sanitários e socioeconómicos) devastadores das pandemias, expondo gritantemente as nossas fragilidade e precariedade. Daí que a COVID-19 nos faça lembrar a síndroma sociopsicológica das pestes que assolaram a Europa nos séculos XIV-XV e XVI-XVII, com replicas ainda no século XIX e inicio do século XX, a peste negra, a peste bubónica, etc. Claro que se tratam de fenómenos muito diferentes, desde logo porque as pestes tinham uma origem bacteriana e esta pandemia tem uma origem viral. O que aqui comparamos é a perceção social subjetiva, é o estado de insegurança, é o sentido de fragilidade e da precariedade também com a COVID-19. Ou seja, estão presentes muitos dos traços fundamentais que costumamos, pelo menos na ficção literária, associar às pestes: o alarme social, os óbitos em massa, as listagens de infetados, de hospitalizados, de mortos, etc., o isolamento social, os confinamentos, as quarentenas, os cordões sanitários, etc. (Daniel Defoe, Diário da Peste de Londres, Lisboa, Bonecos Rebeldes, 2007).
Claro que a confiança positivista numa suposta segurança ontológica conferida pelo progresso cientifico e tecnológico resultava talvez de desconhecimento do cidadão comum. Todavia, por um lado, a verdade é que as estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto ao crescimento de mortes por infeções respiratórias graves, para os anos 2016-2060, apontam para um crescimento de 50% nos próximos 40 anos, de 2,96 para 4,62 milhões de mortes por ano. Entre as causas de tal crescimento estão nomeadamente as pneumonias associadas à família corona vírus (G. Lippi e M. Plebani; op. cit., p. 2). Por outro lado, também as artes dramáticas nos têm alertado para o espectro de fenómenos virais altamente mortíferos e contagiosos, e com potencial de difusão global. No filme de Wolfgang Petterson, de 1995, Outbreak – Fora de Controle, é descrita a perigosidade e o potencial de contágio do vírus Ébola, muito mais mortífero do que a COVID-19, de África para os EUA (recorde-se que, nos períodos 1995-2013 e em 2014-2017, houve crises graves de Ébola em África). Mais próximo da realidade atual, o filme Contágio, de 2011, da autoria da Steven Soderberg, dá-nos conta de uma pandemia com epicentro na Ásia e com réplicas nos EUA: com origem nos mercados de compra e venda de animais vivos, o vírus teria origem nos morcegos e numa mutação interativa morcegos – porcos (no caso da COVID-19 a origem é alegadamente nos morcegos em interação com cobras), seria altamente contagiante e mortífero, tendo-se propagado para os EUA devido à globalização. As parecenças com a COVID-19 são perturbadoras, mas sobretudo fazem supor conhecimentos anteriores do potencial já existente para este tipo de pandemias.
- A Pandemia da COVID-19 e a globalização neoliberal
Alguns veem nesta atual pandemia um reflexo de determinados padrões de desenvolvimento, transversais a regimes capitalistas e socialistas, fundamentalmente antropocêntricos e assentes na ideia de domínio do homem sobre a natureza (vide Viriato Soromenho Marques no JL, nas duas edições anteriores). Não estou em condições de avaliar a ancoragem empírica de tais meganarrativas de raiz ecologista, mas a explicação mais prosaica (e com ancoragem empírica reconhecida) para a eclosão desta pandemia, avançada por especialistas neste tipo de fenómenos, é a de que se deve à falta de condições sanitárias dos mercados de animais vivos na China. Diz-nos Jared Diamond: «a maneira mais fácil de ter evitado esta crise teria sido a China ter aprendido com a crise da SARS (isto é, a SARS-CoV1), de 2003. Essa crise resultou da transmissão de corona vírus de civetas para humanos nos mercados de animais na China. Esta crise poderia ter sido evitada se a China tivesse fechado os seus mercados de animais em 2003 (…) (Público, 4-4-2020). Alan Badiou é mais cru: «Os mercados chineses (no caso vertente na província de Wuhan, com 40 milhões de habitantes) são conhecidos pela sua perigosa sujeira e por sua tendência irreprimível para a venda ao ar livre de todo o tipo de animais vivos, empilhados uns sobre os outros. Daí o facto de, num determinado momento, o vírus se encontrar presente, sob a forma animal herdada dos morcegos, num meio popular muito denso, em condições rudimentares de higiene (in Mike Davis et al, Coronavírus e a luta de classes, Brasil, Terra sem Amos, 2020, p. 37). A posição imperial da ditadura comunista misturada com o capitalismo de estado chinês na globalização neoliberal contemporânea, ponto central na produção de mercadorias para o mercado mundial, mas também das conexões áreas e navais com o resto do mundo, fez o resto, em termos de difusão, claro. Note-se que o epicentro de várias pandemias recentes (SARS-CoV1, SARS-CoV2, gripe das aves, gripe dos porcos) tem sido precisamente a China. Comparando com a gripe espanhola, diz-nos Jared Diamond, a percentagem de mortos terá sido equivalente à da COVD-19, mas «porque não havia aviões a jato»; já quanto à peste negra, a percentagem de mortos terá sido «muito maior», mas não havia transmissão entre continentes (ou seja, a globalização) e tudo se concentrou na Eurásia.
Neste contexto, há dois elementos de forte perplexidade. Primeiro, porque é que o Ocidente não impõe à China a exigência de condições sanitárias mínimas para participar no comércio mundial (já para não falar também em condições mínimas do ponto de vista ambiental e social)? Um esboço de resposta, que não podemos obviamente desenvolver aqui, é a seguinte: talvez porque o domínio chinês sobre o capitalismo global contemporâneo é de tal ordem que estamos todos sob o jugo de facto de uma ditadura comunista em termos de comércio internacional. Segundo, dados os episódios de pandemias anteriores (nomeadamente a SARS-CoV1, mas também as gripes das aves e dos porcos), combinados com as previsões da OMS quanto ao crescimento futuro das doenças respiratórias, porque será que as grandes farmacêuticas não investem mais em vacinas, nomeadamente numa «vacina universal contra a gripe – isto é, que visa as partes imutáveis das proteínas de superfície do vírus (Mike Davis in op. cit., 2020, p. 11)»? A resposta, ainda segundo Mike Davis, é a de que 15 das 18 maiores farmacêuticas norte-americanas abandonaram esse campo por ser pouco lucrativo face, por exemplo, aos «medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência masculina». De repente, os responsáveis políticos europeus descobriram que estamos todos demasiado dependentes da China, até para os produtos mais básicos e/ou mais essenciais. Mas descobrimos também que o epicentro de grande parte das pandemias recentes tem sido na Ásia, devido a falta de condições sanitárias, e a sua difusão mundial depende da híper globalização contemporânea. Saberemos ser consequentes, nomeadamente infletindo e regulando determinados aspetos da globalização?
PS:
1º)
Saído originalmente no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas», quinzena 6-5-2020 a 19-5-2020, como «Covid19, China e Alter-globalização». Agora em acesso livre.
2º)
Vários elementos posteriores e/ou concomitantes com a feitura e/ou publicação do artigo vieram dar razão ao nosso argumento central: ver aqui, ali e acolá.
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