“Concentração pela dignidade”

“Concentração pela dignidade”

Acabo de ler uma notícia de uma manifestação organizada por pessoas sem-abrigo, e agendada para o próximo dia 15 às 10 horas em frente à Assembleia da República. Esta é uma manifestação que eu qualificaria de urgente, necessária e notável – que se trata, como bem descreve o apelo à confluência, de uma “concentração pela dignidade” humana. Um dos organizadores, António Santos, sem-abrigo, resume o propósito desta iniciativa:  “Ter uma luz do dia, sairmos todos da escuridão. Não é só ter promessas políticas e nada ser feito”, acrescentando que “A gente precisa de conforto não é só na altura das eleições ou na altura do Natal” (citações retiradas da notícia consultada, cujo link assinalo no fim deste artigo).

A maioria de nós, portugueses, não se esquece da promessa veemente do Presidente da República de que até ao fim da sua legislatura (e já a findar, como se sabe) retiraria da rua todos os sem-abrigo e sem-tecto. E na verdade, é a isto que se tem resumido a resolução política nesta matéria: um rol de promessas, empreendedorismo dos agentes da caridade e alguns documentos estratégicos que apontam intenções resolutivas que nunca ecoam e nem se materializam para além do “papel”,  prorrogando uma impiedosa “invisibilidade” e menosprezo destas pessoas.

Esta condição de sem-abrigo, mesmo tendo sofrido alterações ao longo dos tempos – pois houve tempo que os designavam de “vadios” e até lhes decretavam prisão  – num pleno século XXI que se suporia aquém da mendicidade, da pobreza e da exclusão social,  a realidade aponta-nos para um quadro de inequívoca marginalização de seres humanos. São estas pessoas a descrever os albergues para onde são ostracizadas “Não têm condições (têm percevejos, porcaria, quartos pequenos com 18 pessoas); Cada pessoa tem um número, ali o nome não existe. Quando se entra para ali, é como uma prisão: não és mais que um número”.

E a verdade é que são mais os organismos não-governamentais que  têm contribuído para atenuar esta condição crescente de pessoas sem-abrigo, que atira para a rua centenas de pessoas ( jovens , inclusive) por circunstâncias de natureza social (é só considerar os números da pobreza, do desemprego e dos despejos no nosso país) mas também do foro da saúde – a maioria destas pessoas padecem de doença mental ou de adições, como o alcoolismo e outras substâncias psicotrópicas. Porém, esta não é uma matéria de caridade mas de resolução e de vontade política no que respeita à área social, o que é aliás corroborado pela Constituição da República Portuguesa que obriga as entidades governamentais responsáveis pela área social e do direito ao trabalho e à habitação, a desenvolver todas as ações para a prevenção e combate das causas e factores de risco que conduzem a estas situações, de modo a que todos os cidadãos tenham a mesma dignidade social. De igual forma, é também assegurado pela CRP que a saúde é um direito universal, pelo que mais uma vez é aos organismos governamentais que cabe garantir a assistência médica, preventiva e curativa, a estas pessoas. Não bastam meras estratégias e planos governativos, há que promover um conjunto de “eixos de intervenção” que envolva toda a sociedade e entidades públicas e privadas, centradas na pessoa sem-abrigo, a par de um levantamento do real número de pessoas nestas circunstâncias e – mais do que isso – “diagnosticar” em cada uma delas as suas necessidades individuais, porque nesta matéria “cada caso é um caso”, não há um “padrão” que alinhe todos os sem-abrigo numa única categorização, sendo inegável a multidimensionalidade e complexidade deste fenómeno, que assume uma expressão crescente entre nós.

E não se avance demagogicamente de que “há pessoas que estão na rua porque querem” (o mesmo se diz em relação à prostituição e a verdade, inclusivamente estatística, é que ninguém gosta de – ou sequer escolhe – prostituir-se). Há pessoas que estão na rua porque não lhes são apresentadas alternativas! Porque as entidades tutelares e responsáveis não se empenham na criação de condições para que ninguém seja impelida ou obrigada a permanecer na rua. Porque, mesmo prometendo, muitos dos nossos responsáveis políticos (sobretudo em contexto eleitoral ou de outra propaganda política) não se dedicam ao esforço da criação de condições para que ninguém tenha de permanecer na rua, mobilizando todos os recursos e possibilidades para que estes indivíduos se integrem socialmente, autonomamente, no exercício pleno da sua cidadania.

Porque, e repito o mote: esta não é uma matéria de caridade, tantas vezes deploravelmente aliada a negócios, mas de escolha política de um governo em relação à temática social pelo que é imperativo que se opte por medidas políticas adequadas e de prevenção, seja na área da saúde, da habitação ou do trabalho!

É preciso saber “colocar-se no lugar do outro” e ter a consciência de que cada um de nós é um potencial candidato à situação de sem- abrigo: basta, por exemplo, que falhemos cinco prestações de casa e de carro consecutivas, sem ter qualquer suporte familiar! Ou que sucumbamos a depressões, a adições, ao desemprego, etc, aliados , muitas vezes, a uma causal ou consequente quebra de laços familiares).

É experimentar, simplesmente, olharmos nós mesmos a rua através de quem a vive!… É aterrador! Mas não será um exercício fácil, é verdade, porque como escreveu Aquilino Ribeiro, “aos pobres ninguém os vê”.

( Notícia supra-mencionada , aqui:
https://postal.pt/sociedade/2020-06-13-Sem-abrigo-manifestam-se-segunda-feira-para-exigir-condicoes-para-viver?utm_source=site&fbclid=IwAR0EtirqhONm02qFamrXEgMOt8GHY1DkLWJZ8t6GalS4Li04b7aaPkdWLUg)
Sílvia Vasconcelos
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Sílvia Vasconcelos
vasconcelos.silvia@gmail.com

Médica Veterinária a concluir doutoramento em Ciências Veterinárias, componente biomédica sobre os benefícios dos animais para saúde mental dos seres humanos. Actualmente dirigente nacional e coordenadora regional do Movimento Democrático das Mulheres, foi também deputada pela CDU na Assembleia Legislativa da Madeira. Foi ainda actriz no Teatro Experimental do Funchal, integrando vários projectos artísticos de teatro e de televisão desde 1986.

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